O filme 007: Sem tempo para morrer (EUA, 2021), dirigido por Cary Fukunaga, é o último do ator Daniel Craig no papel de James Bond. No longa, a vinheta de abertura é um espetáculo à parte, e que faz uso da intertextualidade como principal recurso. Essa abertura, que pode ser considerada uma espécie de clipe ou minifilme, traz a introdução clássica (Fig. 1), com música de Monty Norman (aquela que se tornou famosa e que se tornou também sinônimo do agente 007, depois de ter sido exibida no filme Dr. No, lançado nos anos 1960).
Figura 1: Abertura tradicional, nos filmes de James Bond, ao som da música de Monty Norman. Imagem disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4KKncqVthKo>
No entanto, essa parte é bem breve, pois logo tem início o clipe propriamente dito, com música de Billie Eilish ("No time to die" — mesmo título da história). Sem dúvida, essa coincidência reforça os diálogos que a abertura faz com a narrativa, a ponto de se poder afirmar que há spoillers, mas esses aparecem em uma linguagem cifrada, artística e figurativa. Infelizmente ou não, apenas os espectadores mais atentos se dão conta disso. Além do mais, essa relação só pode ser feita depois que o filme termina. Portanto, se você já viu o filme, vale a pena rever a vinheta de abertura, para tentar estabelecer paralelos com o enredo...
Em termos de sonoridade, a música de Billie Eilish recebeu indicação em todos os eventos, na temporada de premiações, tendo ganhado as duas estatuetas principais: o Grammy, em 2021, antes mesmo de o filme ser lançado; e o Oscar, em 2022, mostrando que está à altura da inesquecível composição de Monty Norman.
Na plasticidade, o clipe utiliza as cores puras vermelho e azul e seus matizes, verde e alaranjado. Tudo, na abertura, diz respeito ao tempo (ou à falta dele) e por isso as imagens não se cansam de mostrar pêndulos, ponteiros e engrenagens de relógios (Fig. 2).
Figura 2: Ponteiros e engrenagens de relógios no clipe de abertura, ao som da música de Billie Eilish. Imagem disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4KKncqVthKo>
Além disso, uma série de armas disparando forma uma espiral, que, simbolicamente, pode representar a dilatação e aprofundamento do tempo. Até mesmo uma ampulheta aparece no clipe. De início, carros, estátuas e escudos parecem estar soterrados em um deserto, mas, logo depois, esse terreno arenoso revela-se como sendo o interior de uma ampulheta (Fig. 3), que escoa a areia e o tempo lentamente...
Figura 3: Do deserto à ampulheta.
Imagens disponíveis em: <https://www.youtube.com/watch?v=4KKncqVthKo>
No minifilme, os efeitos especiais também ganham ênfase: estátuas caem, rachando-se pela ação do tempo. Na tentativa de conter essa corrosão, algumas cenas mostram tatuagens sobre um corpo, fazendo referência a algo perene e marcante. Em uma menção direta à história do filme, os tiros que saem das armas formam os rostos dos personagens principais, assim como dezenas de armas atirando acabam formando uma sequência de DNA (Fig. 4), a qual, por sua vez, corresponde às imagens dos clones e das múltiplas seguras que se formam em um calidoscópio.
Figura 4: Formas construídas com os rastros dos tiros disparados e com as armas enfileiradas. Imagens disponíveis em: <https://www.youtube.com/watch?v=4KKncqVthKo>
Passando agora à análise do filme em si, são notáveis o movimento da câmera e o ângulo das filmagens. No primeiro caso, merece destaque o travelling, que pode ser feito na horizontal ou na vertical, com o intuito de acompanhar cada ação de determinado personagem. Evidentemente, isso torna a narrativa mais imersiva, permitindo a identificação do espectador com o protagonista e com as aventuras vividas por ele. Já, quanto ao segundo caso, o ângulo que chama atenção é o zenital, que ocorre quando a câmera é fixada no topo do cenário, possibilitando a filmagem de cima para baixo. O resultado desse procedimento é uma imagem total, ampliando a visão e a participação do público. No que diz respeito ao protagonista, depois de 15 anos à frente do papel do agente 007, Daniel Craig despede-se da franquia. Como possível substituta, uma nova espiã é escalada e se apresenta como sucessora de James Bond. Nomi é uma agente (mulher e negra) representada pela atriz Lashana Lynch. Nos dias de hoje, essa possibilidade de troca significa não apenas uma inovação, mas também um alinhamento com o discurso politicamente correto (Fig. 5).
Figura 5: Nomi e James Bond: os dois agentes 007? Imagem disponível em: <https://revistaesmeril.com.br/wp-content/uploads/lashanacraig1-696x437.jpg>
Aliás, nesse aspecto, outro exemplo digno de nota é o novo MIB (Men in Black), protagonizado pela atriz Tessa Thompson e pelo ator Chris Hemsworth, os quais foram encarregados de substituir Will Smith e Tommy Lee Jones, respectivamente. Antes disso, nenhum filme da série MIB tinha trazido uma agente mulher (muito menos negra). Deixando de lado o critério do gênero e privilegiando o aspecto racial, há inúmeros exemplos de personagens que podem ser citados: a mulher gato de Michelle Pfeiffer deu lugar à mulher gato de Halle Berry. Além disso, até a Hermione, da saga Harry Potter, foi representada, no teatro, por uma atriz negra. Isso sem falar de outros casos bastante conhecidos, tais como: Raio Negro; Nick Fury, em Os vingadores; Wilson Fisk, o famoso Rei do Crime; Estelar, na série Jovens titãs; Aquaman; e até mesmo a Pequena Sereia.
Em termos estéticos, 007: Sem tempo para morrer faz um elogio ao cinema noir, na longa sequência protagonizada por Paloma, personagem da atriz Ana de Armas. O resgate do noir é feito no figurino de Paloma, no suspense das cenas e na iluminação, que privilegia o jogo entre claro e escuro, utilizando, inclusive, persianas no cenário (Fig. 6).
Figura 6: Figurino e iluminação: os elementos da estética noir no filme. Imagens disponíveis em: <https://midias.agazeta.com.br/2021/10/01/filme-007---sem-tempo-para-morrer-616159-article.jpg e https://uploads.metropoles.com/wp-content/uploads/2021/09/28172807/007-sem-tempo-irmao_5.jpg>
Em outra passagem, o noir chega a ser representado pictoricamente, como ocorre nesta cena, que reúne elementos de época (como o automóvel, por exemplo), além de eleger o meio tom e de fazer uso de certo rebuscamento, transformando a imagem em um quadro, com fundo sépia (Fig. 7):
Figura 7: Cena pictórica com elementos da estética noir. Imagem disponível em: <https://1.bp.blogspot.com/-vwYZUJgRs5Y/YTAllhfsSfI/AAAAAAAAgzU/d_UbGJ93ghMg2SUW5ytE5Ms0GXqjhOfkQCNcBGAsYHQ/s640/007%2B-Sem%2Btempo%2Bpara%2Bmorrer_Universal%2BPictures%2B%252821%2529.jpg>
O filme 007 — Sem tempo para morrer começa e termina com música. Ao final, a canção “We have all the time in the world”, de Louis Armstrong, contextualiza a narrativa. Muito mais do que uma simples trilha sonora, essa música retoma uma fala do protagonista, com o propósito de explicar o fim da história.
Apesar disso, tudo acaba em mistério e cabe ao público tentar solucioná-lo, opondo a música “No time to die”, de Billie Eilish, à canção “We have all the time in the world”, the Louis Armstrong. Nós, de fato, temos todo o tempo do mundo, ou não temos tempo nem mesmo para morrer? Quem tem razão e qual terá sido o fim do agente mais famoso do mundo?
REFERÊNCIA
007: SEM TEMPO PARA MORRER. Direção de Cary Fukunaga. EUA: Metro-Goldwyn-Mayer e Eon Productions; United Artists e Universal Studios, 2021. 1 DVD (183 min); son.
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* Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.
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