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Foto do escritorVerônica Daniel Kobs

CURITIBANICES E NACIONALISMOS NAS ARTES


Em 2013, fui ao Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, para ver a exposição A magia de Escher e assim conhecer mais sobre a obra de Maurits Cornelis Escher, o artista holandês que ficou famoso no mundo todo, por suas xilogravuras e litografias, nas quais predominam o sépia e o padrão p&b. Havia inúmeras telas, esboços e até mesmo algumas projeções, que davam som e movimento aos labirintos perturbadores criados pelo artista (Figs. 1 e 2).


Figura 1: As escadarias e os espaços não lineares na obra de Escher

 

Figura 2: Psicodelia e formas geométricas nas artes visuais de Escher. <https://pt.dreamstime.com/illustration/escher.html>                                                                    

Em contraste com as paredes brancas, as molduras pretas e a iluminação — que oscilava entre o branco e o amarelo envelhecido —, acabaram me envolvendo em uma atmosfera obscura, que sem dúvida favorecia o jogo de espelhos e a ilusão de ótica sugeridos por Escher e vivenciados por nós, espectadores. O ambiente aos poucos foi ficando menor, até se tornar opressor, principalmente por causa de algumas tonalidades que surgiam, como cinza, amarelo, marrom e bege, matizes do sépia e do p&b.

Na exposição, todas as imagens desafiavam a lógica, rompendo continuidades e territórios. A maioria das figuras era incompleta, com sobreposições, emendas e linhas que não levavam a lugar nenhum. Entre todas elas, uma em particular parecia ser mais simples, quase normal (Fig. 3).

 


Figura 3: Extravasamento espacial e ilusão de ótica: outras características marcantes de Escher. Imagem disponível em: <https://newronio.espm.br/exposicao-do-escher-no-ccbb/>

 

A duplicidade da imagem fazia o público pensar. A mão intrusa, bem na base da tela, sai da esfera ou simplesmente a segura? O homem está dentro da redoma, vivendo em um mundo replicado — imperfeito e diminuto —, ou ele apenas se vê, em seu ambiente real, refletido no vidro da esfera? Passei mais de uma hora naquela sala, sem saber do incômodo que aquelas obras estavam provocando em mim. Na verdade, só entendi esse fenômeno psicológico (e talvez também estético) quando cruzei a linha e entrei em outra sala de exposições (Figs. 4, 5 e 6):


Figura 4: Pinheiros (1930), de Alfredo Andersen. Imagem disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Alfredo_Andersen_-_Pinheiros,_1930.jpg>

                                                                                                                

           

Figura 5: Paisagem (1919), de Alfredo Andersen



Figura 6: A queimada (Lavadeiras) (sem data), de Alfredo Andersen

 

Quando entrei no outro espaço, senti uma espécie de alívio. Fiquei feliz e me senti em casa, em meio aos pinheiros de Alfredo Andersen. Tentei simular aqui esse efeito, para tentar saber se você, leitor, também percebeu a enorme diferença entre os modos como sentimos as obras de Escher e Andersen. Para mim, vendo as telas do mestre da pintura paranaense, foi como seu eu tivesse visto uma imensa luz brilhante — que, naquele momento, significava vida ou renascimento. O espaço se abriu e a sala se tornou absurdamente clara. As paredes brancas agora realçavam o verde, o marrom, o azul e o branco, das matas e dos céus que me encantavam nas telas do artista norueguês radicado no Brasil. Não tive dúvida de que meu bem-estar foi causado pelas imagens dos pinheiros, que fazem parte do meu mundo e da minha história, desde a infância.

A araucária, junto com o pinhão e a gralha-azul, é o símbolo do Paraná. Embora seja predominante na região Sul, o pinheiro araucária também é encontrado em algumas cidades do Sudeste do nosso país. Fora do Brasil, ele existe em algumas paisagens da Argentina e do Paraguai. Sempre tive um apreço especial por esse tipo de pinheiro, mas só entendi o que ele de fato representa, em minha identidade cultural, naquele dia, no museu, quando a arte me colocou entre Escher e Andersen...

Pensei que nunca teria a oportunidade de revisitar essa experiência, mas isso mudou há alguns dias, quando assisti ao documentário Coleção arte presente em Inhotim: Rirkrit Tiravanija (BRA, 2018), dirigido por Pedro Urano. O filme apresenta a obra Palm pavilion (Fig. 7), do artista tailandês Rirkrit Tiravanija. Exposta no museu Inhotim, em Minas Gerais, desde 2006, a instalação é considerada a “primeira montagem ao ar livre” do espaço de artes mineiro (INHOTIM, 2020).

 

O pavilhão é uma adaptação da famosa Maison Tropicale (1951), do arquiteto francês Jean Prouvé (1901-1984), [...]. A réplica produzida por Tiravanija abriga em seu interior variadas espécies de palmeiras, vídeos, vitrines e mesas com objetos relacionados à planta, [...]. Os vídeos contidos na obra documentam um teste nuclear no sul do Pacífico, com um grupo de palmeiras filmadas em primeiro plano, e uma série de imagens que têm a palmeira como referência cultural [...]. A partir da colaboração da equipe de botânica de Inhotim, que agregou à obra uma grande coleção de palmeiras, Tiravanija adiciona à visão puramente científica de Jardim Botânico uma análise sociocultural sobre a espécie, um ícone do exotismo tropical. (INHOTIM, 2020)

 

Figura 7: Palm Pavilion (2006-), de Rirkrit Tiravanija, no Museu Inhotim (MG): fachada (à esq.) e interior (à dir.) Imagens disponíveis em: <https://www.flickr.com/photos/gaf/35471486292> e <http://www.viajandosempressa.com.br/2016/08/viagem-ao-instituto-inhotim-um-complexo-museologico/>

 

O artista Rirkrit Tiravanija, embora tenha nascido na Argentina, imprime em suas obras a identidade da cultura tailandesa. Por essa razão, ele escolheu as palmeiras, afinal, como ele mesmo afirmou, em um trecho do documentário, essa planta é abundante na Tailândia. Para Rirkrit, as palmeiras lembram o aconchego da casa, no sentido de lar e pertencimento, mas, ampliando esse contexto, ele reconhece que para a maioria das pessoas a palmeira está relacionada à ideia de paraíso. A partir disso, o próprio expositor retoma as correspondências que há muito conhecemos: entre a Bíblia, a terra prometida (e paradisíaca) e o Oriente (COLEÇÃO, 2018).

De fato, muitas parábolas bíblicas mencionam palmeiras, como mostra este trecho de Números: “E partiram de Mara, e vieram a Elim, e em Elim havia doze fontes de águas e setenta palmeiras, e acamparam-se ali” (BÍBLIA ON-LINE, 2020, Números 33:9). Quanto à outra referência resgatada pelo artista, prevalece a representação do Oriente como terra estranha, diferente, motivo pelo qual esse território carrega o estigma do exotismo, como afirma o teórico Aguiar e Silva: “[...] o Oriente, com o seu mistério, o fascínio das suas tradições, das suas cores e dos seus perfumes, se transformou no mito central do exotismo dos românticos” (SILVA, 2002, p. 549). Sem dúvida, esse exotismo estreita os laços entre a Tailândia e o Brasil e podemos dizer que a palmeira tem papel fundamental nesse cartão de visitas. Então, vejamos: em 1836, o projeto nacionalista era o eixo do Romantismo. De modo simplificado, o objetivo era usar a literatura para criar uma identidade para o Brasil, que há pouco tinha se tornado um país independente de Portugal e precisava se firmar, política e culturalmente. Sendo assim, como todo processo identitário é baseado no realce das diferenças, a proposta dos escritores românticos era representar, na arte literária, os elementos autóctones, com ênfase à origem indígena e à exuberância da fauna e da flora, afinal tudo isso tinha seduzido os europeus. Esse era, enfim, o cenário exótico que daria ao Brasil uma identidade própria.

 

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá. (DIAS, 2020)

 

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. (ALENCAR, 2020)

 

Nos fragmentos transcritos acima, que correspondem, respectivamente, ao início da oitava que abre o poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, e ao início do capítulo dois do romance Iracema, de José de Alencar, o projeto nacionalista realiza-se de modo pleno, porque a pátria brasileira exalta a natureza de diferentes modos, incluindo a vegetação, os pássaros e a força do povo indígena. Nesse contexto histórico, a longa visita de João VI ao Brasil ainda era relativamente recente e, em terras tropicais, um dos feitos mais conhecidos desse personagem ilustre da história diz respeito justamente às palmeiras (Fig. 8):

 

Figura 8: Palmeiras na Praia da Lagoinha (CE), à esq.; e na entrada do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (RJ), à dir. Imagens disponíveis em: <https://www.queroviajarmais.com/praias-de-fortaleza/> e <https://letsflyaway.com.br/simbolos-do-rio-de-janeiro/simbolos-do-rio-palmeiras-jardim-botanico/>

 

A entrada do Jardim Botânico do Rio de Janeiro guarda até hoje o presente que D. João VI deu ao Brasil: as palmeiras imperiais, que atualmente são predominantes na América do Sul e na América Central. O destaque à Praia da Lagoinha, no litoral cearense, cumpre, aqui, dupla função: estabelecer uma relação com a personagem Iracema, cuja história representa a lenda de criação do Ceará; e exemplificar a importância das palmeiras na representação da imagem do paraíso, tal como mencionado por Rirkrit Tiravanija, na descrição da obra Palm pavilion.

Como país tropical, hoje o Brasil é rico em palmeiras. Enquanto a imperial continua sendo associada à presença da família real por aqui (Fig. 9), um tipo mais comum da planta é a tamareira anã, frequentemente escolhida para a decoração de jardins. Esse tipo de vegetação veio do Sudeste da Ásia, o que comprova o laço entre nosso Brasil, a Tailândia de Rirkrit Tiravanija e, consequentemente, entre esses dois países e as ideias de exotismo e paraíso. Claro que, nesse contexto, o Brasil foge à regra, por não ser uma terra oriental. Porém, talvez isso sirva para acentuar ainda mais a diferença e a sedução que despertamos nos estrangeiros, sobretudo nos europeus.

 

Figura 9: Casarão com palmeira imperial ao lado: o local hospedou a família real, em Paraty (RJ), e hoje é uma pousada, comandada por um dos descendente da realeza. (Crédito da foto: Leonir Kobs)

 

E há, ainda, as famosas palmeira rabo-de-peixe e palmeira buriti (Fig. 10). Ambas são abundantes no estado de Mato Grosso do Sul. No entanto, a rabo-de-peixe tem fama internacional, sendo originária do Sul e Sudeste da Ásia, enquanto o buritizeiro, batizado de palmeira da Amazônia, ganhou ares de planta tipicamente brasileira, principalmente depois de se tornar referência frequente nas obras do escritor Guimarães Rosa. Inclusive, as famosas veredas e a palmeira buriti são as principais atrações do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, área de conservação ambiental que se estende por um vasto território, entre os estados de Minas Gerais e Bahia.

 

Figura 10: Palmeira rabo-de-peixe (à esq.) e Palmeira buriti (à dir.), em Bonito (MS).

(Crédito das fotos: Verônica Daniel Kobs)

 

Em solo brasileiro, as palmeiras são, portanto, presença constante. Embora elas sejam mais recorrentes nas regiões Norte e Nordeste (Fig. 11), elas também enfeitam as paisagens do Sul, apesar do clima mais frio. Aliás, Alfredo Andersen também registrou a influência dessa vegetação no cenário paranaense. Na tela Rocio, por exemplo, que retrata a cidade litorânea de Paranaguá, o artista realçou a beleza dessa planta paradisíaca (Fig. 12).

 

Figura 11: Palmeiras nos arredores de Natal (RN), no Nordeste brasileiro: Praia do Amor (à esq.); e Baía Formosa (à dir.), quase na divisa com o estado da Paraíba. (Crédito das fotos: Verônica Daniel Kobs)

                                                                                                      

Figura 12: Rocio (1896), de Alfredo Andersen: palmeiras em meio à vegetação de Paranaguá (PR), no Sul do Brasil. Imagem disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/bios/bio_aandersen/andersen_1896_rocio.jpg>

 

Evidentemente, não podemos negar a importância das palmeiras na formação da identidade brasileira, nas paisagens nacionais e consequentemente nas artes. Porém, na esteira da intermidialidade e da interculturalidade, a obra Palm pavilion, de Rirkrit Tiravanija, fez reviver em mim o sentimento de estranheza pelo fato de ver, em um só dia (e na sequência), as obras de Escher e Andersen, e essa coincidência me fez discordar do aspecto paradisíaco das palmeiras. Naquela fatídica visita ao museu, fiz uma descoberta essencial: a inconsciência do desconforto causado pela psicodelia e pelo contraste intermitente do preto e do branco de repente se fez luz e me fez perceber que, em vez da célebre palmeira, o meu paraíso é feito de pinheiros (Figs. 13 e 14), “onde [às vezes] canta um Sabiá”. 


Figura 13: Pinheiros próximos a um lago, em Tijucas do Sul (PR)

(Crédito da foto: Verônica Daniel Kobs)

 

Figura 14: Pinheiro no topo de um morro, na região de Prudentópolis (PR)

(Crédito da foto: Verônica Daniel Kobs)

 

Para mim, não importa o fato de ser um pinheiral ou apenas um pinheiro solitário, no topo de um morro qualquer. Por onde quer que vá, um pinheiro sempre me emociona. Ele representa um lugar especial, sinônimo de casa de vó, de infância... Por isso, o pinheiro sempre vai estar em meu paraíso particular.

Portanto, hoje me parece muito natural que eu tenha preferido os quadros de Alfred Andersen às obras de Escher, afinal, como dizia Paulo Leminski, meu conterrâneo: “Pinheiro, não se transplanta” (REBUZZI, 2003, p. 74).

 

 

REFERÊNCIAS

ALENCAR, J. de. Iracema. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/iracema.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2020.

BÍBLIA ON-LINE. [Sem título]. Disponível em:  <https://www.bibliaonline.com.br/acf/busca?q=balanando+pela+palmeira>. Acesso em: 24 ago. 2020.

COLEÇÃO arte presente em Inhotim: Rirkrit Tiravanija. Direção de Pedro Urano. BRA, 2018 (52 min); son. [Programa exibido pelo canal Curta (canal 56 da NET Claro), no dia 22 ago. 2020.]

INHOTIM. Rirkrit Tiravanija. Disponível em: <http://www.inhotim.org.br/inhotim/arte-contemporanea/obras/palm-pavilion/>. Acesso em: 24 ago. 2020

REBUZZI, S. Leminski, guerreiro da linguagem. Uma leitura das cartas-poemas de Paulo Leminski. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.

SILVA, V. M. de A. e. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 2002.

 

Texto originalmente publicado em 2020, no blog Recorte Lírico.


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* Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.

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