Este texto contém spoilers.
O filme O mundo depois de nós (EUA, 2023), dirigido por Sam Esmail, tem sido bastante comentado, mas, lamento dizer, usando as premissas erradas. Várias resenhas apresentam o que chamam de “final explicado” e para mim isso é um problema, porque essas explicações interferem na interpretação de cada espectador, anulando a polissemia. Além disso, todo final explicado é um convite à falta de reflexão, gerando leitores e espectadores menos atentos e menos criativos. Até os jornais aderiram a essa moda de complicar o que é simples, noticiando algo banal, como o fim de um casamento de celebridades, por exemplo, e acrescentando à manchete a expressão “Entenda”. O que há para entender em uma separação? Esse tema não merece tanta importância assim. Ou, como diria o personagem machadiano: “Valha-me, Deus! é preciso explicar tudo?” (Assis, 1970, p. 375).
No entanto, os redatores se empenham e gastam três ou quatro páginas explicando o que não precisava ser explicado. Aliás, dependendo do veículo de comunicação, um fato como a tal separação nem deveria ser noticiado... Talvez seja por esse excesso de explicações que, conforme estudos recentes, “publicados pelo Centro Nacional de Biotecnologia dos EUA”, foi constatado que os jovens de 14 a 22 anos têm “uma capacidade de atenção menor que a de um peixe de aquário” (Müller, 2021). Isso significa que o tempo de concentração dos humanos “caiu de 12 segundos em 2003 para 8 segundos em 2013, um segundo a menos que o ‘attention span’ de um peixe” (Müller, 2021). Com base em dados como esse, defendo a ideia de que as facilitações extremas dos finais de filmes e séries (que não apenas são explicados, mas também unificados e homogeneizados) afetam ainda mais as capacidades de concentração, pensamento e inventividade.
O outro problema é a explicação que está sendo oferecida para o final do filme O mundo depois de nós. Em vários sites de cinema, lemos que a referência à clássica série Friends significa uma tábua de salvação e que ainda há esperança para o mundo, por meio da arte (Carneiro, 2023). Contudo, depois de assistir ao filme, eu concluí exatamente o oposto disso: a escolha de citar, no filme, a sitcom Friends é uma ironia e sinaliza o pessimismo em relação ao presente (e ao futuro) da sociedade. Afirmo isso, porque no filme da Netflix, e também no mundo de hoje, ninguém é amigo de ninguém. Em O mundo depois de nós, mesmo no círculo familiar há antagonismo e isso aumenta quando a família Stanford interage com pessoas estranhas (Fig. 1).
Figura 1: Cena que mostra o afastamento entre os personagens da história. Imagem disponível em: https://www.techtudo.com.br/listas/2023/12/o-mundo-depois-de-nos-veja-explicacao-sobre-o-final-do-filme-da-netflix-streaming.ghtml
Nesse contexto, o personagem Clay (Ethan Hawke), por exemplo, deixa uma mulher sozinha na estrada, mesmo sabendo que a situação é de perigo iminente. Entretanto, ele não é o personagem mais insensível da trama. Esse título cabe à Amanda (Julia Roberts), a Danny (Kevin Bacon) e também à Ruth (Myha'la Herrold), pelo narcisismo e individualismo que esses personagens expressam a cada cena. Inclusive, a protagonista, Amanda, antes de sair de férias com a família, confidencia ao marido que “odeia pessoas” e que “não vê a hora de sair daquela cidade” (O Mundo, 2023). Aliás, isso explica o título original do filme, Leave the world behind (ou seja: Deixando o mundo para trás).
É por todas essas razões que a referência à série Friends sugere uma leitura negativa das relações interpessoais no mundo de hoje. Portanto, ironicamente, o fato de a menina Rose (Farrah Mackenzie), filha de Amanda e Clay Stanford, ser fã desse programa acentua a sua alienação e, nesse sentido, também convém lembrar que a letra e o título da música-tema de Friends, I'll be there for you, são, no filme, totalmente contrariados, porque ninguém nunca estará lá para os outros. Coerente com essa interpretação, no longa-metragem Rose termina protegida, em um bunker, sem contar de sua descoberta para ninguém da família, assistindo ao último episódio de Friends, já que, segundo ela, “isso a fazia feliz” (O Mundo, 2023), e aproveitando o banquete de comida e bebida que ela encontrou, na casa abandonada (Fig. 2).
Figura 2: Rose, sozinha, assistindo ao último episódio de Friends. Imagem disponível em: https://www.techtudo.com.br/listas/2023/12/o-mundo-depois-de-nos-veja-explicacao-sobre-o-final-do-filme-da-netflix-streaming.ghtml
O filme da Netflix é baseado no livro de 2020, escrito por Rumaan Alan. Como se trata de uma adaptação, é natural que o enredo passe por mudanças e uma delas é o final. No livro, Rose volta para casa em que está hospedada com a família e conta da sua descoberta. Porém, o mesmo não ocorre no filme e é justamente essa escolha do diretor que nos dá o prognóstico de uma sociedade cada vez mais alheia ao outro e o mais aterrador é imaginar que isso pode estar sendo causado pelo avanço da tecnologia, principalmente no que se refere à Internet. Claro que a maioria das coisas nunca é criada para o mal. Contudo, devemos supor que algo pode ter saído dos trilhos, ao longo dos anos, afinal a Internet (originalmente criada para aproximar pessoas e encurtar distâncias) está acostumando as pessoas ao isolamento e isso resulta na falta de convivência e empatia. As pessoas estão cada vez mais alheias, sem se importar com os outros ou com o mundo ao seu redor.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Editores, 1970.
CARNEIRO, Raquel. ‘O mundo depois de nós’: Entenda o final do filme da Netflix. 11 dez. 2023. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/coluna/em-cartaz/o-mundo-depois-de-nos-entenda-o-final-do-filme-da-netflix>. Acesso em: 11 dez. 2023.
MÜLLER, Luiz. Acha a música pop atual um lixo? Agradeça a esse cara… 26 jul. 2015. Disponível em: <https://luizmuller.com/2015/07/26/acha-a-musica-pop-atual-um-lixo-agradeca-a-esse-cara/>. Acesso em: 13 mar. 2024.
O MUNDO depois de nós. Direção de Sam Esmail. EUA: Higher Ground Productions, Red Om Films, Esmail Corp. e Netflix Studios, 2023. AVCHi-Mobile (128 min).
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* Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.
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