A MENINA SEM QUALIDADES: CLIQUE AQUI PARA INICIAR
- Verônica Daniel Kobs
- 13 de jan. de 2019
- 28 min de leitura
Atualizado: 26 de fev. de 2020

Em seu primeiro trabalho para a TV, Felipe Hirsch fez a adaptação de um romance alemão de mais de quinhentas páginas: Spieltrieb, de Juli Zeh. O título associa jogo e exagero, por encerrar ideia de plenitude e abundância. No Brasil, o livro foi traduzido por Marcelo Backes e ganhou o título A menina sem qualidades, pela estreita relação do romance com a obra O homem sem qualidades, de Robert Musil. Essa aproximação não é gratuita, já que a história apresenta vários trechos de perspectiva filosófica. Além disso, o livro de Musil é uma das principais leituras do protagonista, Alex (ou Alev, no original alemão).
A adaptação televisiva é muito próxima da tradução brasileira. Nem podia ser diferente, afinal o tradutor Marcelo Backes também auxiliou no roteiro, assinado por Felipe Hirsch e Renata Melo. A direção coube a Felipe Hirsch e Helena Bagnoli[1] e a história foi dividida em 12 capítulos, para atender ao formato de série, com capítulos curtos, com menos de trinta minutos cada. Transmitida em rede nacional pela MTV, A menina sem qualidades estreou no dia 27 de maio de 2013. A história da minissérie A menina sem qualidades fala sobre a adolescência e sobre os inúmeros conflitos que caracterizam essa fase. Escola, família, sexualidade e identidade são a base do enredo, que envolve, em um primeiro momento, Alex (Rodrigo Pandolfo) e Ana (Bianca Comparato). Posteriormente, o professor de literatura, Tristán (Javier Drolas), cresce em importância e passa a fazer parte de um jogo iniciado pelos dois alunos.
Neste trabalho, será discutida a questão relacional entre identidade e alteridade, a partir da análise da adaptação televisiva e de trechos do romance de Robert Musil. Entretanto, é preciso deixar claro que o objetivo principal deste artigo não é fazer um cotejamento entre os textos, para avaliar o resultado ou demonstrar o processo de adaptação. Em vez disso, objetiva-se analisar como o processo de identidade/alteridade é estabelecido, em A menina sem qualidades, pelo uso que a história faz do livro O homem sem qualidades e por outras características inerentes à adaptação televisiva.
Na primeira parte deste trabalho, serão apresentadas e analisadas algumas características da série A menina sem qualidades, ao mesmo tempo em que será enfatizado o perfil de Ana, protagonista da história, em flagrante oscilação, no processo de consolidação de sua identidade. Para tratar desse aspecto, serão feitas algumas comparações entre a minissérie e o romance de Robert Musil, O homem sem qualidades. No que se refere à base teórica, serão de grande auxílio os estudos de Mikhail Bakhtin, nas situações de conflito entre ego e alter. Na segunda parte do artigo, os temas serão o perfil de Alex, o jogo feito por ele e sua influência sobre os personagens Ana e Tristán. Com base em textos de Emmanuel Lévinas, Pierre Bourdieu, Norbert Elias e John L. Scotson, a identidade e a alteridade serão relacionadas à manipulação e à busca pelo poder. Posteriormente, os conceitos de ego e alter serão associados ao perfil dos adolescentes, em conformidade com os estudos de Paulo Sérgio do Carmo.
BREVE PERFIL DE ANA E DA MINISSÉRIE, A MENINA SEM QUALIDADES
Com ênfase ao aspecto psicológico, A menina sem qualidades, de Felipe Hirsch, mostra os protagonistas em uma fase decisiva. Durante a adolescência, o processo identitário faz com que o indivíduo se depare com dúvidas de diferentes tipos e que, dependendo das escolhas que serão feitas, podem delinear um ou outro caminho a ser seguido. As relações de alteridade são peças essenciais nas decisões a serem tomadas. Priorizando relações de oposição ou de aliança, a identidade se faz pelo contato com o(s) outro(s) e, na adolescência, a importância disso se multiplica. Aliados e/ou opositores surgem em todo tipo de esfera social (na família, na escola e até mesmo nas relações amorosas, seja no caráter sexual ou afetivo).
Em conformidade com o destaque do aspecto psicológico, que se impõe pela complexidade dos temas tratados e pelo perfil dos personagens, a produção assume ritmo próprio. A história é lenta, não economiza em detalhes e, por isso, consegue combinar a violência de algumas imagens com a beleza e a singularidade de outras, além de fazer bom uso da contundência das palavras e das ações. Sobre essas características, a crítica também fez avaliação positiva, como atestam os trechos que seguem:
(...) a imagem acompanha a proposta da história e do tom pessoal do texto. Ainda fazendo um trabalho de luz e câmera, a imagem não se sobrepõe nem engole os personagens, dando-lhes liberdade de existir. Por vezes fixa e em outros momentos em movimento (sem ser frenético), a câmera consegue coexistir com os atores. (FURQUIM, 2013)
Ao contrário de dramas populares, o ritmo que a direção e a montagem imprimem ao seriado é lento, contemplativo, como que para ambientar o espectador num universo que explodirá em confusão e obsessão conforme a história se desenrola. A fotografia é acertada e capricha em planos longos. (OLIVEIRA, 2013)
O que mais chama atenção, nos efeitos da lentidão que a crítica destaca, é a oposição aos “dramas populares”, como afirma Fernando Oliveira, sobretudo levando-se em conta o público-alvo, na maioria composto de adolescentes. De fato, a série recusa a estrutura mais simples e popular e, em parte, isso se deve à aproximação que existe entre a adaptação televisiva de Hirsch e o romance de Robert Musil, de claro teor filosófico, como demonstra o seguinte trecho:
Seria importante saber por que, ao falarmos num nariz vermelho, nos contentamos que seja vermelho, sem nos importarmos com o tom especial de vermelho, embora este possa ser descrito com exatidão em micromilímetros, pela freqüência das ondas. Mas numa coisa tão mais complexa como a cidade em que nos encontramos, sempre gostaríamos de saber exatamente que cidade é. Isso nos distrai de pontos mais importantes. (MUSIL, 1978, p. 8-9)
O problema da exatidão é uma necessidade que leva a um tipo específico de olhar e de posicionamento diante das pessoas e diante do mundo. Exige-se a contemplação, a profundidade. É preciso pensar a respeito das coisas e questioná-las a todo o momento e é exatamente assim que Ana, principalmente, e também Alex e Tristán se comportam, durante o jogo de que participam, em A menina sem qualidades.
Evidente que outra razão para essa contrariedade aos “dramas populares” está no estilo de Felipe Hirsch, que sempre trabalha com a complexidade das relações humanas. Outra característica de seus trabalhos é o cuidado extremo no que se refere à imagem (no cenário, em se tratando das peças de teatro, dos filmes e agora também da série; e na fotografia, na adaptação televisiva e no cinema). Em A menina sem qualidades são vários os exemplos de imagens que associam a beleza a um ponto de vista específico e singular. Entre eles, merecem destaque duas cenas, do quarto e quinto episódios, respectivamente.
Na primeira cena, Alex rememora a infância e um flashback mostra a criança e o pai (Wagner Moura), no carro, durante um acidente. Quando ocorre a batida, o close não é dado nos corpos inclinados sobre o painel, mas nos estilhaços de vidro. Esse deslocamento do objeto que é focado pela câmera evita a imagem-clichê e direciona o olhar do espectador para outra imagem, capaz de significar (do mesmo modo que a imagem-clichê) o óbvio, ou seja, que os corpos inclinaram-se para a frente, devido ao impacto. Assim, a imagem-chichê não aparece e dá lugar a uma imagem diferente, que altera o modo de mostrar e contar a história, assim como modifica o olhar do espectador, importante diferencial entre a produção dirigida por Felipe Hirsch e os chamados “dramas populares”.
A segunda cena mostra o carro de Tristán, em meio a uma estrada cercada de vegetação e a sombra das árvores se reflete no para-brisa, enquanto o carro passa pelo bosque. Essa imagem também serve para exemplificar a fotografia primorosa da série, porém, não é comparável à anterior, no que diz respeito à ruptura estética.
Outro elemento marcante, em A menina sem qualidades, é a música, que, além de servir de pano de fundo para o enredo, vem a calhar, já que a emissora (MTV) que transmitiu a minissérie privilegia o gênero musical e conta com um público formado de adolescentes e de fãs de música dos mais variados tipos. Outra constatação importante é o fato de a música desempenhar papel fundamental em algumas produções de Felipe Hirsch. Sob esse aspecto é relevante resgatar o espetáculo de teatro Trilhas sonoras de amor perdidas, apresentado no Festival de Teatro de Curitiba de 2011. Protagonizada por Guilherme Weber e Natália Lage, a peça teve mais de três horas de duração e reuniu mais de oitenta músicas de rock, cuidadosamente selecionadas por Felipe Hirsch.
Na adaptação televisiva de 2013, a música tem importância fundamental, desde a primeira cena do primeiro episódio. No making of da série, Hirsch e Bianca Comparato, respectivamente, afirmam:
Escolhi músicas pra cada personagem (...), pra cada evento que acontece na série. (A MENINA, 2013)
(...) o Felipe Hirsch, todo mundo sabe, é um cara muito musical. Ele me passou uma playlist da Ana e metade, ou mais da metade, eu nunca tinha escutado antes e foi incrível. Eu descobri uma cantora chamada Judee Sill, que é maravilhosa e tem uma música chamada The kiss. Jesus and Mary Chain eu conhecia, mas nunca tinha escutado. Bom, e em uma série da MTV não podia faltar uma banda[2]. (A MENINA, 2013)
Como se vê, a música não é mera coadjuvante na série e está presente em alguns dos melhores momentos. Entretanto, dois ápices musicais aparecem no segundo e no décimo episódios. No capítulo dois, o tema é a rebeldia de Ana, que tem uma família desestruturada e se vê dividida entre relações hetero e homossexuais. Para combinar com esse perfil, o gênero musical escolhido e que domina todo o episódio é o punk rock. Nada poderia ser mais apropriado, já que o movimento punk é um dos maiores ícones da rebeldia, com ideologia própria, contundente e de grande efeito político e comportamental. O punk, na Inglaterra dos anos 1970, marcou toda uma geração e consolidou um grito de guerra contra o establishment. No episódio dez, a música dialoga com o enredo para ilustrar o momento em que Ana alcança sua libertação. Fora o fato de a personagem aludir à libertação afetiva e financeira em relação à mãe e ao general (que Ana considera como um pai), Ana passa a ter outra função no jogo estabelecido por Alex e que envolve Tristán. Os três deixam de se considerarem inimigos e passam a ser aliados. Ana e Alex antes formavam um time, oposto ao professor. Depois, Ana assume uma posição intermediária e, com isso, finalmente consegue transformar o grupo. O embate e a disputa momentaneamente dão lugar a um grupo que age unido para conseguir a satisfação dos desejos de todos. Por isso, o episódio se encerra com uma regravação da música True, de Glen Medeiros, que serve para reforçar o tom otimista e a felicidade (mesmo que passageira) que Ana sente, por ter se libertado em diversos sentidos.
No que diz respeito aos temas que a história aborda e discute, e que são apresentados já nos primeiros episódios, para depois serem aprofundados, ao longo da série, estão a problemática relação entre escola e política, a (falta de) estrutura familiar e o efeito disso sobre o jovem. Aliás, o tema familiar é bastante explorado. Alex, amigo de Ana, sofre porque mora com os pais, casados há muito tempo. No segundo episódio, ele diz a Ana que pode sofrer de algum tipo de trauma pelo fato de os pais dele ainda viverem juntos (MTV, 2013). Ana sofre pelo motivo oposto ao de Alex, porque tem “uma família mutilada, mas moderna. No fim das contas, normal” (MTV, 2013). Ana mora com a mãe, separada do marido, que não é o pai de sua filha. As duas mães, de Ana e de Alex, são letárgicas, alienadas e totalmente ausentes. Ambas passam muito tempo na sala de casa. A diferença é que a de Ana tem um visual rebelde, bebe, fuma o tempo todo, ouve música e parece nunca ter saído dos anos 1980. Já a mãe de Alex tem aparência de doente e fica deitada, em uma cama improvisada na sala.
A relação com os pais, por meio da simples convivência e sobretudo pelos diálogos (e pelas memórias de infância de Alex), problematiza a questão de como as atitudes dos pais podem ou não interferir nas ações dos filhos. Além disso, quando os temas são as relações amorosas e a sexualidade, a família também surge como entrave e como perpetuadora das “tradições” e do preconceito. No primeiro episódio da série, Ana se corresponde e se relaciona com Selma, por quem se apaixona. Selma também gosta de Ana e as duas começam um relacionamento, que dura pouco, apenas até o momento em que a família de Selma descobre tudo e afasta a filha de Ana. A mãe de Ana também percebe a paixão da filha por outra garota e passa a exigir que Ana seja mais feminina. Em uma cena do capítulo um, a mãe fala a Ana: “Para as mulheres, beleza é uma obrigação” (MTV, 2013). Esse comentário preconceituoso instala definitivamente o conflito entre mãe e filha. A mãe não aceita Ana como ela é de fato e tenta interferir em seu modo de agir e de se vestir, para tentar “corrigir” a opção sexual da filha. Como se isso já não fosse o bastante, principalmente somando-se à perda de Selma, Ana ainda tem de enfrentar o bullying dos colegas, na escola. A reação de um grupo de alunos ao comportamento de Ana ultrapassa os apelidos e as insinuações maldosas. Ana é agredida, moral e fisicamente, à beira da piscina do colégio. A violência torna-se ainda mais chocante pelo silêncio de Ana, que é chutada, humilhada e desrespeitada, com toques agressivos por todo o seu corpo.
Nesses momentos, de conflito com a mãe, com os pais de Selma e com os colegas de escola, Ana se vê sozinha. Os outros se afastam dela, recusam-na e se opõem a ela, o que reforça o temperamento introspectivo de Ana. Por isso, ela se fecha em si mesma, em seu mundo, junto com seu diário, com as cartas que escrevia à Selma e com os livros. Esse processo altera a dinâmica ideal e usual das relações interpessoais, pois, de acordo com Bakhtin:
Qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata.
Com efeito, a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados (...). (BAKHTIN, 1997, p. 112)
Dessa forma, a alteridade atinge Ana de duas formas distintas. Em um primeiro momento, o outro se depara com Ana em uma interação social típica e provoca nela sentimentos e reações. Mas, no segundo momento, Ana internaliza os efeitos da interação, sem dar resposta ao interlocutor de fato. Ela escreve e registra para si o que pensou e o que sentiu, no momento do confronto com o outro. É como se a alteridade de Ana fosse o seu próprio reflexo. Nesse caso, a reação ao outro só aparece, quando ela escreve no diário, no espaço recluso da biblioteca ou na esfera privada do quarto. De acordo com Bakhtin, a palavra auxilia o indivíduo a se definir e a se posicionar em relação ao outro: “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim, numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor” (BAKHTIN, 1997, p. 113). Porém, Ana não explicita sua palavra, não a torna pública, já que essa se realiza no formato confessional do diário e, assim, inverte, novamente, o processo de interação. Com isso, Ana forja um outro imaginário, abstrato, que é mero reflexo de si, afinal ela escreve e ela mesma lê o que escreve. Ninguém, além dela, conhece suas dúvidas, apreensões e seus medos. Por vezes, o outro também assume a função de um mero objeto, como é o caso dos livros lidos por Ana.

Ana, isolada e sozinha, em meio aos livros. (FURQUIM, 2013)
Apesar da falta de resposta e de posicionamento de Ana diante do outro, no momento da interação, o ato de refletir sobre os embates sociais que experimenta e de escrever sobre eles forma e consolida a consciência e a ideologia de Ana:
Fora de sua objetivação, de sua realização num material determinado (o gesto, a palavra, o grito), a consciência é uma ficção. (...). Mas, enquanto expressão material estruturada (através da palavra, do signo, do desenho, da pintura, do som musical, etc.), a consciência constitui um fato objetivo e uma força social imensa. (...) a consciência tem uma existência real e representa um papel na arena do ser. Enquanto a consciência permanece fechada na cabeça do ser consciente, com uma expressão embrionária sob a forma de discurso interior, o seu estado é apenas de esboço, o seu raio de ação ainda limitado. (BAKHTIN, 1997, p. 118)
O outro, quando não é um objeto ou uma espécie de duplicação de Ana, é um sujeito de fato (a mãe, os pais de Selma e os colegas de escola), mas todos eles agem em flagrante oposição a tudo que Ana é, faz e pensa. Isso a repele, mas aa atividades de escrever e de consolidar sua consciência levam-na ao autoconhecimento, processo que a ajuda na formação de sua identidade, com posicionamentos mais claros e com escolhas mais seguras. É apenas quando Ana se relaciona com Olavo, Alex e com Tristán que o outro deixa de ser um inimigo para se transformar em aliado. Nesse instante, a arena social de Ana se completa, pois a interação deixa de representar apenas negação, contrariedade e violência. A oposição se mantém, pois as pessoas são diferentes umas das outras, mas é facilmente controlada. Com seus amigos Ana negocia, dialoga, debate, conflita ideias, sem violência, nem contrariedade permanente.
Nesse processo de tentativa e erro, Ana vai testando possibilidades, comportamentos, para tentar definir sua identidade. Mas, enquanto as coisas não se estabelecem, nem se consolidam, ela experimenta dúvida e oscilação a todo instante, a exemplo do que ocorre no romance de Musil:
E como a posse de qualidades pressupõe certa alegria por serem reais, podemos entrever como uma pessoa que não tenha senso de realidade nem em relação a ela própria pode sentir-se de repente um homem sem qualidades. (MUSIL, 1978, p. 15)
É talentoso, cheio de vontade, despreconceituoso, corajoso, resistente, destemido, prudente. Não quero examinar isso em detalhes, acho que ele tem todas essas qualidades. Mas também não as tem! (MUSIL, 1978, p. 48)
Assim como Ana, o protagonista de O homem sem qualidades reúne características antagônicas e reflete a crise de identidade em momentos de incerteza e de (in)satisfação consigo mesmo. Essa dualidade e a ruptura frequente das expectativas diferenciam o jovem do adulto e, por esse motivo, constituem elementos essenciais na formação da identidade.
Embora, nesta parte, tenham sido citados apenas os temas mais relevantes e principais do enredo de A menina sem qualidades, eles já servem para comprovar a importância e o sentido da série para o público adolescente e para a sociedade atual. Essa mesma identificação existe no romance de Juli Zeh e na tradução brasileira de Marcelo Backes e a adaptação televisiva soube explorar muito bem isso, como demonstra a figura abaixo:

Cartaz da série, veiculado na televisão e nas
mídias eletrônica e impressa. (FURQUIM, 2013)
A propaganda chama atenção pelos períodos que se sobrepõem à imagem de Tristán, na parte superior do cartaz: “É ficção. Mas nem tanto.” Isso evidencia a associação que existe entre os temas e os personagens da história e os problemas e as pessoas da sociedade contemporânea. Com o mesmo apelo, sobre a imagem inferior do cartaz, que traz a protagonista, Ana, está escrito: “O retrato de uma geração que vive além dos limites do certo e do errado.” Destaquem-se, nesse período, o termo “retrato”, a ideia de subversão e o questionamento em relação aos padrões e à ordem social. Essas características fazem parte da rebeldia, que é inerente à adolescência e que também faz parte do romance O homem sem qualidades, em um trecho que mostra a conversa de Clarice e Walter, quando este cita Goethe: “O que Goethe chama de personalidade, o que Goethe chama de ordem móvel, disso ele não tem idéia: ‘Esse belo conceito de poder e limites, de arbitrariedade e lei, de liberdade e medida, de ordem móvel...’” (MUSIL, 1978, p. 47). A “ordem móvel” vai ao encontro da transgressão de “limites do certo e do errado” que faz parte do cartaz que anuncia a minissérie e esse tipo de comportamento é, na visão de Paulo Sérgio do Carmo, sinal de autoafirmação e de consolidação identitária: “Para Richard Bucher, ‘transgredindo, o jovem pode (se) provar que é alguém, que tem valor, que dispõe de uma existência própria, que é (quase) independente (...)’” (CARMO, 2003, p. 258). Isso tem grande importância na trajetória de Ana e ambas, a transgressão e a identidade, acentuam-se depois que ela conhece Alex e, sobretudo, depois que ele a envolve no jogo de poder que, inicialmente, se estabelece com a ajuda de Ana, contra Tristán, como será demonstrado na segunda parte deste artigo.
EU COM O OUTRO E CONTRA O OUTRO: A IDENTIDADE E AS RELAÇÕES DE PODER
Apesar de Ana ter um comportamento que já a diferenciava dos outros, com os quais convivia na escola e na família, sua transgressão resumia-se às suas escolhas e ao seu modo de ser e pensar, que iam de encontro à convenção social. Porém, com Alex, Ana extrapola esse limite e entra em um jogo de manipulação[3] que envolve a realização dos desejos dela, do próprio Alex e de Tristán, posteriormente. Alex é o verdadeiro transgressor, que impulsiona Ana a agir de um modo agressivo, comportamento que corresponde mais à personalidade dele do que à dela. Nesse jogo, importam os conceitos de identidade e alteridade, porque Ana passa a se definir como pessoa, dependendo de Alex, em um primeiro momento, mas, no final, reagindo às ordens dele e ao poder que ele exerce sobre ela: “(...) eu me vejo a partir do outro, exponho-me a outrem, tenho contas a prestar. É esta relação com o outro eu, em que o eu é arrancado da sua primordialidade, que constitui o acontecimento não gnosiológico, necessário à própria reflexão entendida como conhecimento e, por conseqüência, à própria Redução egológica” (LÉVINAS, 2004, p. 123-4). Isso significa que é a convivência e o jogo com Alex e Tristán que ajudam no processo de autoconhecimento e na consolidação da identidade de Ana, que se descobre na relação com o(s) outro(s).
Na minissérie, esse processo de desvendamento do personagem ocorre principalmente a partir do momento em que surge, na história, a obra de Robert Musil. O romance é apresentado à Ana por Alex, quando ele confessa que O homem sem qualidades era seu livro de cabeceira. Instigada pelo colega e pelo convite ao jogo: “A vida só pode ser jogada se a gente abrir mão de qualquer resultado exato” (MTV, 2013), Ana decide ler o livro. Entretanto, outra referência à obra de Musil já tinha sido feita por Alex, anteriormente, quando ele fala dos defeitos e das qualidades que possui: "Qualidade? Não tenho nenhuma, pelo menos humana. Defeito? Nenhum... Pelo menos desumano" (MTV, 2013).
São muitos os elos entre a adaptação televisiva e O homem sem qualidades. Há, inclusive, trechos que se relacionam a essa subversão da ordem social, que, em A menina sem qualidades, torna-se a essência do jogo comandado por Alex: “Ainda não nasceu o homem capaz de dizer aos seus discípulos: Roubem, matem, sejam lascivos...” (MUSIL, 1978, p. 31); “Além disso, ele hoje ainda está muito longe de ser conseqüente. É bem possível que um crime que prejudique a outros lhe pareça apenas um erro social, cuja culpa não cabe ao criminoso mas à ordem social” (MUSIL, 1978, p. 15). Essas duas passagens relacionam-se ao perfil de Alex, na série dirigida por Felipe Hirsch. A primeira faz referência clara à transgressão e ao ideal de Alex de questionar e subverter a ordem social, que se concretiza quando ele usa Ana e Tristán para encenar um jogo de traição, sexo e assédio moral. Ele consegue ser o homem que tem discípulos e que lhes ordena um comportamento desregrado e pervertido. No segundo trecho, existe a noção distorcida que Alex tem da realidade. Para ele, tudo não passa de um jogo e não haverá maiores consequências. Ele usa e prejudica o(s) outro(s), mas sem se dar conta do efeito exato que isso terá na vida de Ana e Tristán. Ele sabe que a atitude dele resultará em problemas, sobretudo para o professor, mas não mensura o impacto desse resultado. Simplesmente, ele tem uma atitude blasé sobre o(s) outro(s): não é problema dele o que o jogo pode provocar. Com esse pensamento, ele se isenta da culpa e transfere essa responsabilidade à ordem social.
O modo como Alex se opõe às normas sociais cria um novo sistema, particular e aplicável ao restrito universo do jogo que o envolve, junto com Ana e o professor. Na obra Os estabelecidos e os outsiders, Elias e Scotson fazem a seguinte associação:
No fim de seu ensaio, Merton apresenta a "estrutura social" e a "anomia" como fenômenos antitéticos; elas são apresentadas como pólos opostos de um continuum: onde a "anomia" prevalece, há pouca ou nenhuma "estrutura social''; seu lugar é tomado pelo caos cultural (ou, talvez, social); "a previsibilidade e a regularidade do comportamento social" ficam reduzidos a nada. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 190)
Nessa citação, a “estrutura social” corresponde à convenção social, à sociedade tal como a conhecemos, e a “anomia” é o processo de contrariedade a essa convenção. No instante em que Alex, com a ajuda de Ana, estabelece novas regras, que são contra o sistema, mas em favor da satisfação de seus próprios desejos e da consolidação do poder (no caso dele) e da identidade (no caso dela), o individualismo se sobrepõe ao social. Por algum tempo, há a sensação de que o caos é que domina, pelo fato de as regras de Alex contrariarem o que a sociedade estabelece como certo e errado. Entretanto, logo em seguida, as novas regras ditadas por Alex fundam uma nova ordem, afinal: “Nenhum agrupamento humano, por mais desordenado e caótico que seja aos olhos daqueles que o compõem ou aos olhos dos observadores, é desprovido de estrutura” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 192).
Unindo os aspectos psicológico, filosófico e social, Alex joga com a realidade e com o destino dos outros, evidenciando novas aproximações com a obra de Musil:
Assim, o senso de possibilidade pode ser definido como capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é. (MUSIL, 1978, p. 14)
(...) as pessoas apenas não sabem disso; não têm idéia de como se pode pensar; se pudéssemos ensiná-las a pensar diferente, também viveriam de modo diferente. (MUSIL, 1978, p. 31)
Em sua visão deturpada de seu “livro de cabeceira”, Alex não se contenta apenas com “pensar tudo aquilo que também poderia ser” e concretiza essas possibilidades, rompendo os limites sociais e pessoais, pois ele altera as normas estabelecidas pelo sistema, sem se preocupar com o uso que faz da vida do(s) outros(s). Esse gosto pela manipulação, que faz Alex transitar entre a realidade e as múltiplas possibilidades de alterá-la, opondo os conceitos de “mundo real” e “ideal”, assegura-lhe o poder sobre a situação e sobre a(s) vida(s) alheia(s): “A comparação do mundo com um laboratório despertara nele outra vez uma idéia antiga. Um grande centro de experiências, onde se testavam as melhores maneiras de ser uma pessoa, e se deveriam descobrir novas: antigamente, muitas vezes imaginara que a vida teria de ser assim, para lhe agradar” (MUSIL, 1978, p. 93).
Embora Alex não seja plenamente consciente de como sua irresponsabilidade interfere de modo decisivo, na relação de Ana e Tristán[4] , Ana se dá conta disso, em meio ao jogo: “Desde toda a eternidade um homem responde por outro. De único a único. Que ele me olhe ou não, ‘ele me diz respeito’; devo responder por ele” (LÉVINAS, 2004, p. 291). O lado extremamente racional de Alex o impede de ver o que é muito claro para Ana: Alex, ao iniciar o jogo, torna-se responsável por Ana e por Tristán. Ela, ao aliar-se a ele, também é responsável por Alex e pelo professor. Para fechar o ciclo, Tristán, ao aceitar as regras do jogo e ao ceder a cada chantagem, também tem sua parcela de culpa e de responsabilidade no que diz respeito a Ana e Alex: “(...) a ordem da justiça dos indivíduos responsáveis uns pelos outros surge não para estabelecer esta reciprocidade entre o eu e seu outro, mas por causa do terceiro que, ao lado deste que me é um outro, me é ‘também um outro’” (LÉVINAS, 2004, p. 293). A tríade se estabelece, ilustrando o que Lévinas postula no trecho citado. Dessa forma, o jogo proposto por Alex atinge alto nível de complexidade, inverte as normas de duas esferas sociais (da sociedade, no sentido amplo, e também da escola) e testa o caráter dos jogadores, que têm a possibilidade de ultrapassar os limites convencionais de certo e errado. Na suprarrealidade criada por Alex, todos estão interligados, sobretudo considerando-se o fato de que eles decidem jogar deliberadamente. Mesmo a Tristán, que sofre ameaças, é dada a possibilidade de dizer “não”, de buscar outra saída para o problema, mas ele decide continuar jogando.
O universo do jogo estabelecido, em A menina sem qualidades, ao mesmo tempo em que serve de metáfora às relações sociais, cria um mundo novo, possível e paralelo ao mundo real. No início, é muito clara a hierarquia que se estabelece e que, do maior para o menor, apresenta-se desta forma: Alex – Ana – Tristán, em conformidade com o que Bourdieu explicita no livro O poder simbólico:
Na realidade, o espaço social é um espaço multidimensional, conjunto aberto de campos relativamente autônomos, quer dizer, subordinados quanto ao seu funcionamento e às suas transformações, de modo mais ou menos firme e mais ou menos directo ao campo de produção econômica: no interior de cada um dos subespaços, os ocupantes das posições dominantes e os ocupantes das posições dominadas são ininterruptamente envolvidos em lutas de diferentes formas (sem por isso se constituírem necessariamente em grupos antagonistas). (BOURDIEU, 1989, p. 153)
Nesse fragmento, o autor demonstra as relações de poder que opõem, continuamente, o eu e o(s) outro(s). Novamente, comprova-se que o jogo das relações interpessoais, no universo criado por Alex ou na sociedade real, está condicionado à identidade e ao conhecimento: “O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica (...)” (BOURDIEU, 1989, p. 9). Na verdade, no caso de Alex, aproveitando as palavras de Bourdieu, o poder está na tentativa de reconstrução da realidade.
Esse tipo de comportamento é típico da adolescência. Inclusive, de acordo com Paulo Sérgio do Carmo (2003), os jovens tendem a desafiar o sistema, contrariando pais, professores e policiais, no processo que o autor chama de “três pês”:
A inquietação juvenil é vista como sinal de problema, de rejeição da família e da busca da emancipação. Sua tendência comum de cometer pequenas transgressões, contestando pais e desafiando autoridades, não somente faz parte do processo de crescimento, como também é necessária para a retomada da auto-afirmação e da auto-estima abaladas. (CARMO, 2003, p. 258)
Relacionando essa passagem ao jogo que se estabelece entre os personagens de A menina sem qualidades, reforçam-se constatações já indicadas neste trabalho. O autor associa a rebeldia dos jovens a causas e consequências bastante pertinentes para a análise da adaptação televisiva: a consequência é a emancipação inerente à consolidação da identidade; e a causa é a falta de estabilidade na família, percebida no perfil de Ana e de Alex: “Há aqueles que já vivenciaram antecipadamente todas as etapas naturais da idade, praticando todo tipo de liberdades, antes reservadas apenas aos adultos. Filhos de pais ausentes, ou daqueles que têm grandes dificuldades para impor limites, esses jovens podem criar brincadeiras selvagens (...) por pura diversão” (CARMO, 2003, p. 221).
O jogo de Alex, em primeira análise, além de ser causado pela desestabilidade no universo familiar, é orientado pelo individualismo, pois interessam a ele a satisfação dos desejos e a obtenção de poder em sua relação com o(s) outro(s). As coisas são interdependentes, já que, para garantir que seus desejos se realizem, é preciso exercer o poder sobre o(s) outro(s). No caso de Alex, em suas interferências junto a Ana e a Tristán, a violência psicológica é usada para tornar possível o estabelecimento do poder. A pressão é tanta, sobretudo no que se refere ao personagem do professor, que a notícia do fim do jogo gera, em Tristán, o efeito inverso. O professor não fica grato pelo fim das ameaças e das chantagens, como seria de se esperar. Ao contrário, ele não quer perder Ana e sua participação no jogo garante seu relacionamento com a menina. E, mais do que isso, ele não aceita ser descartado por Alex de modo tão frívolo, afinal, assim como ele foi incluído na brincadeira de modo inconsequente e sem sua aprovação ou vontade, ele é dispensado por Alex de uma hora para outra, sem explicações a respeito. Nesse instante, Tristán tenta restabelecer o jogo de poder, usando a violência física, e agride Alex. Essa associação entre poder e violência (seja ela física ou psicológica) é relevante: “Deve-se associar também a violência à idéia de poder, à possibilidade de alguém impor sua vontade ou intenção sobre o outro” (CARMO, 2003, p. 213). A cena da agressão, no episódio onze, é chocante e proporcional à violência psicológica sofrida pelo professor, durante todo o tempo. Tristán bate em Alex até o rosto dele ficar irreconhecível, em uma poça de sangue. Ao final, o professor se desespera, chora e diz que matou um menino.
Alex (com a ajuda de Ana) e Tristán (por causa de Ana, principalmente) ultrapassam todos os limites nas relações de alteridade, quando deixam a violência interferir de modo decisivo nas questões que geram oposição e conflito. A nova ordem não foi eficaz, nem conseguiu manter-se protegida dos efeitos da sociedade oficial. Com a agressão de Alex, a convenção social volta a imperar: todos são obrigados a responder por seus erros e excessos e a história acaba em um tribunal, com questionamentos sobre Direito e justiça, nesta fala da juíza: “Pra se tornar aplicável, o Direito precisa de um intermediário entre a palavra e o mundo” (MTV, 2013). Essa fala enfatiza a complicada relação entre subjetividade e objetividade e evidencia o risco de estratagemas, como a manipulação ou os diversos modos de recontar um fato. Nesse instante, é decisiva a participação de Ana, que analisa o fato, os comportamentos e as intenções (dela, de Alex e de Tristán), demonstrando que o ponto de vista dela tem grande influência sobre a decisão da juíza ( e também do telespectador). Claro que, no final da série, não é esclarecida apenas a situação que envolve os protagonistas. O último capítulo choca pela violência, que alterna imagens de Alex ensanguentado com sons de sirene de polícia e de ambulância. Nessa parte, menciona-se a dificuldade de se compreender o jogo perigoso que envolveu Tristán e os jovens, ao mesmo tempo em que se questiona sobre as relações de identidade, alteridade e sobre o porquê da violência crescente na sociedade contemporânea. O final de A menina sem qualidades constata a incapacidade de a sociedade compreender o presente “tal como a engrenagem não entende a máquina de que faz parte” (MTV, 2013). Portanto, em um sentido mais amplo, a rebeldia de Alex serve de metáfora às relações e às negociações entre o ego e o alter, à violência (ambas bastante específicas, porque foram consideravelmente modificadas, na contemporaneidade) e à relação entre a juventude e os sistemas simbólicos[5]. Desobedecendo às convenções, ele consegue subverter a ordem social, mas essa atitude egoísta e inconsequente revela a necessidade de haver ordem e limites, em se tratando da vida em sociedade e de identidade/alteridade.
Antes, porém, da reviravolta provocada pela atitude de Trsitán, Ana dá sinais de oposição a Alex e começa a desobedecer às regras do jogo estabelecido por ele. Em flagrante conflito de identidade e de princípios, que a levam a pensar sobre sua função no jogo, Ana, no episódio nove, escapa do controle de Alex e, em segredo, marca um encontro com o professor, na pista de corrida. O lugar é emblemático, pois ela e o professor tiveram muitos encontros e conversaram muito lá. Inclusive, no episódio quatro, Ana chega a dizer a Alex: “Eu preciso correr pra me controlar” (MTV, 2013). Tristán vai ao encontro e ela diz a ele que a garota que lê e ama literatura simplesmente não existe. Ele a contraria, dizendo que quem não existe é a Ana que joga e trai. Novamente, a conversa com Tristán na pista de corrida cumpre sua função e fornece à Ana uma perspectiva diferente daquela que Alex quer privilegiar e, ao convidar novamente o professor para correr com ela, a garota tenta reassumir o controle de sua vida e de seu sentimento por Tristán.
Outro sinal claro da reação de Ana às imposições de Alex é o flagrante que ela planeja, depois de saber por Olavo que Alex faz o mesmo jogo com outro professor e com outra aluna. Alex exigiu que Tristán conseguisse fazer um colega, professor como ele, aceitar a participar do jogo de submissão e sexo. Assim, Alex ampliava seu poder e enredava Tristán em ações de que Ana nem sequer tinha conhecimento. Sabendo disso, Ana surpreende o casal que é a mais nova vítima de Alex e desmascara o amigo, no momento em que este filmava tudo. Por isso, ela decide não ir ao encontro com Tristán e Alex e se recusa a continuar participando do jogo. É, então, a atitude dela que provoca o fim do jogo, mas Alex não explica isso a Tristán e simplesmente o dispensa.
Antes a reação de Ana e, depois, a agressão de Tristán invertem as relações de poder e hierarquia que existiam no jogo. Ana era peça-chave e, sem ela, Alex é obrigado a dar fim à “brincadeira”. Ela se sobrepõe a Alex, que antes dominava, e passa a dar as cartas, redefinindo a situação. Por consequência, Tristán também passa a dominar, quando decide usar a violência física para exercer sua “superioridade” sobre Alex. Dessa forma, Ana e o professor, antes dominados, passam a dominar; e Alex, que anteriormente comandava, é obrigado a se submeter ao(s) outro(s):
Inversamente, quando os grupos outsiders são necessários de algum modo aos grupos estabelecidos, quando têm alguma função para estes, o vínculo duplo começa a funcionar mais abertamente e o faz de maneira crescente quando a desigualdade da dependência (...) diminui - quando o equilíbrio de poder pende um pouco a favor dos outsiders. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 33)
De fato, Ana e Tristán (os “outsiders”) têm função importante para Alex (o “estabelecido”) e a “desigualdade da dependência” diminui. Mais do que isso: em A menina sem qualidades, ela desaparece, dando espaço à inversão nas relações de poder.
Essa superação dá a vitória a Ana, que, no episódio doze, último da série, faz um papel de conciliadora, reconhecendo o lado negativo do jogo, mas também apontando o lado bom daquela experiência. Ela diz à juíza que Alex os afastou das normas sociais, mas os fez felizes. Esta era a intenção de Alex, na opinião dela: “(...) mostrar que o jogo dava felicidade” (MTV, 2013). Alex reconhece a vitória de Ana sobre ele. Eles se despedem, o garoto diz a Ana que irá procurá-la, aos quarenta anos, quando ela irá lhe pertencer e ela vai embora com Tristán. Game over.
CONCLUSÃO
Em associação aos aspectos social e filosófico, a minissérie A menina sem qualidades trata das relações do jovem consigo mesmo, com outros jovens, com a família e com a sociedade. Importa como os adolescentes percebem os problemas da sociedade contemporânea e de que modo participam deles, como espectadores, como pessoas envolvidas nos conflitos e também como aqueles que às vezes os motivam. Esse perfil vai ao encontro do perfil da MTV, uma emissora que privilegia a música e que tem um público predominantemente formado de jovens, características que condicionaram o teor imagético e musical da adaptação feita por Hirsch.
Trabalhando com conceitos que normalmente são opostos, tais como identidade, alteridade, (in)consequência e (ir)responsabilidade, a história expõe e discute a interdependência das coisas, das ações e das pessoas. As oposições podem se tornar relações complementares. Por causa do jogo comandado por Alex, os personagens são obrigados a responder sobre a consequência provocada pela inconsequência e a avaliar a responsabilidade que tiveram de assumir sobre seus atos irresponsáveis, sem que a situação pareça paradoxal ou moralista. A menina sem qualidades trata da ausência de limites, da necessidade de estabelecê-los, de pensar sobre eles e de refletir sobre o que significa estar além ou aquém da fronteira que divide o certo do errado e que separa o sujeito do(s) outro(s).
A minissérie trata do jovem contemporâneo, que vive sob o estigma da geração Y, também chamada de “net generation” (KULLOCK, 2013). Sob esse aspecto, a representação do jogo comandado por Alex torna-se extremamente relevante, pois demonstra a artificialidade das relações interpessoais como resultado dos jogos virtuais, que encenam a realidade, mas sem a necessidade da negociação, do contato e do diálogo constante. De acordo com Eline Kullock (2013), os jovens da geração Y são despreparados para a resolução de conflitos, inábeis para lidar com as diferenças e, por essa razão, diante da menor dificuldade, no mundo real, agem do mesmo modo que agiriam no jogo, no universo on-line. Diante do problema, a única opção para eles é a fuga, o recomeço, sem pensar nas responsabilidades e evitando que qualquer tipo de confronto se estabeleça em profundidade. A decisão é fácil de ser tomada e vem como uma ação automática. Difícil mesmo é resolver qual comando deve ser acionado: Exit, End, Recall, Restart, Esc, Quit, Shut Down ou Ctrl+Alt+Del.
Notas
1 Apesar de Felipe Hirsch ter contado com uma equipe de trabalho, no roteiro e na direção, a crítica e as propagandas veiculadas antes e durante a exibição da minissérie creditavam a minissérie a Felipe Hirsch. Nesta parte do artigo, são informados os nomes de todos os que colaboraram nessas duas etapas da adaptação, para que não sejam omitidos os dados completos da minissérie, dada a natureza científica deste trabalho. Porém, ao longo do texto, será dado destaque ao nome de Hirsch (em conformidade com o material pesquisado, que o menciona como roteirista e diretor principal). Além disso, o papel de destaque de Hirsch também é demonstrado pelo fato de ele ter participado ativamente da escolha do elenco e de ter selecionado cada música que compõe a trilha sonora da adaptação televisiva.
2 A atriz refere-se a uma banda que, na série, é empresariada pelo personagem Olavo (Rodrigo Pavon). O vocalista da banda é Rodrigo (José Sampaio) e o ator trabalhou com uma banda de verdade, Vivendo do ócio, com ensaios frequentes, para alcançar um bom resultado nas cenas, afinal, acompanhado por uma banda real, o ator precisava cantar de fato, sem truques e sem o recurso do playback.
3 No jogo que Alex propõe à Ana, a partir do episódio seis da minissérie, ele obriga a garota a ter encontros com o professor Tristán, no ginásio da escola. A cada encontro, eles devem transar e Alex encarrega-se de filmar tudo. Em certa ocasião, Alex e Ana enviam o vídeo a Trsitán, para chantageá-lo: eles guardarão o vídeo em segredo, se tiverem boas notas e se os encontros sexuais tiverem continuidade. Mais tarde, no décimo primeiro episódio, um amigo de Ana, Olavo, revela que Alex fazia um jogo similar com outra colega deles, Joana.
4 Alex só se dá conta disso no último episódio, quando Ana dá seu depoimento diante dele, de Tristán e da juíza.
5 De acordo com Pierre Bourdieu: “(...) os ‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação de uma classe sobre a outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim (...) para a ‘domesticação dos dominados’” (BOURDIEU, 1989, p. 11).
REFERÊNCIAS
A MENINA sem qualidades: Making of. Direção de Julio Piconi. BRA: MTV, Estúdios Quanta e Quanta Post; Abril Radiodifusão S/A, 2013. 1 arquivo de vídeo (28 min); son.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1997.
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.
CARMO, P. S. do. Culturas da rebeldia. A juventude em questão. São Paulo: SENAC, 2003.
ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
FURQUIM, F. Review: A estreia de ‘A Menina Sem Qualidades’. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/temporadas/series-brasil/review-a-estreia-de-a-menina-sem-qualidades/>. Acesso em: 18 jun. 2013.
KULLOCK, E. Gerações. Disponível em:
<http://www.focoemgeracoes.com.br/index.php/tag/eline-kullock/>. Acesso em: 01 mar. 2012.
LÉVINAS, E. Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
MTV. A menina sem qualidades. Disponível em:
<http://mtv.uol.com.br/videos/programas/a-menina-sem-qualidades>. Acesso em: 19 jun. 2013.
MUSIL, R. O homem sem qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
OLIVEIRA, F. ‘A Menina Sem Qualidades’, da MTV, é intensa e perturbadora, mas distrai ao fazer música ofuscar a história. Disponível em: <http://colunistas.ig.com.br/natv/2013/05/28/a-menina-sem-qualidades-da-mtv-e-intensa-e-perturbadora-mas-distrai-ao-fazer-musica-ofuscar-a-historia/>. Acesso em: 18 jun. 2013.
* Texto originalmente publicado em: Scripta UNIANDRADE, v. 11, p. 168-189, 2013.
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Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE (Curitiba/PR). Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE (Curitiba/PR). Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Possui Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade (realizado na UFPR, em 2018).
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