Em julho de 2023, sob a direção de Greta Gerwig, o filme Barbie estreou nos cinemas, protagonizado por Margot Robbie (Barbie) e Ryan Gosling (Ken). Mesmo antes do lançamento, o longa dividiu opiniões e causou diversos impasses na mídia, no mundo inteiro.Claro que boa parte da polêmica deve-se ao que o senso comum costuma relacionar à boneca mais famosa de todos os tempos. Para os acusadores, o mundo artificial de Barbie representa alienação e futilidade, além de fisicamente a imagem da beldade (branca, magra e loira) ser rotulada de antifeminista, racista, preconceituosa e de instaurar o que muitos chamam de ditadura da beleza. Felizmente, o tipo físico de Barbie não prevalece hoje, quando alguns anúncios publicitários, a moda, as alterações feitas no corpo da boneca e as próprias mulheres defendem a liberdade em relação aos padrões tradicionais, afirmando que a beleza é sentir-se bem e assumir quem você é. Entretanto, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, a boneca Barbie tem uma história que representa uma grande conquista para as mulheres, como veremos ao longo deste texto...
Na minha infância, algumas amigas e minhas primas sempre tiveram Barbies. Outras colegas, porém, menos abastadas, contentavam-se com a Susi, a segunda no ranking encantado das bonecas. Porém, no meu caso, nem Barbie, nem Susi. Eu tinha bonecas maiores, um pouco mais realistas e diferentes entre si (ruivas, loiras, morenas; meninas, bebês e mulheres já feitas, nacionais e importadas). Contudo, hoje sei que a minha preferida foi uma Fofolete, a menor boneca do mundo (inclusive, ela dormia em uma caixinha de fósforos), que há alguns meses reencontrei — à venda, em uma livraria... A nostalgia foi tanta que pretendo comprar minha segunda Fofolete muito em breve!
Confesso, então, que nunca tive uma Barbie (assim como a atriz Margot Robbie e como diversas meninas ao redor do globo terrestre). Além disso, eu odeio cor-de-rosa! No entanto, é impossível negar a importância da Barbie e da cor rosa, quando se trata do verdadeiro império que essa boneca construiu, ao longo das décadas. Sei que o binarismo, com a clássica oposição meninos usam azul e meninas amam rosa também está em baixa atualmente. No entanto, rosa é uma cor icônica quando se trata da Barbie. Todos conhecem o tom exato, que poderia até ser chamado de rosa-Barbie, e, por essa razão, escolhi usar essa cor, nas bordas de todas as imagens deste texto.
Sem dúvida, o uso da cor rosa é metafórico, a fim de simbolizar o universo próprio dos contos de fada. Aliás, nessas histórias infantis, geralmente as personagens loiras são boas, enquanto as morenas protagonizam as vilãs. Em minha memória, entre as princesas clássicas, apenas a Branca de Neve é morena (e boazinha!). Portanto, Barbie dá continuidade ao estereótipo das princesas. Do mesmo modo, o mundo de Barbie, feito inteiramente de plástico, é perfeito e asséptico, como se pudesse reunir todas as coisas magníficas da vida real, na forma de réplicas em miniatura, e sob a proteção de uma redoma. Nas coleções de brinquedo lançadas pela Mattel, e no filme, esse universo peculiar é chamado de Barbieland. Explorando essa ideia, a Warner e a Mattel usaram diversos canais midiáticos para incrementar o lançamento do longa-metragem. Um deles foi a TV, que, poucos dias depois da estreia mundial do filme, passou a exibir a série Barbie Dreamhouse Challenge, com 4 episódios e veiculada pelo canal HGTV. Investindo no filão das reformas instantâneas, a cada semana duas duplas de designers e arquitetos competiam, responsabilizando-se pela decoração de dois cômodos da Casa da Barbie.
Ao longo de um mês, ideias incríveis foram colocadas em prática. No escritório da Barbie, por exemplo, havia uma mesa com base de aquário. No cantinho do Ken, acionando o botão Modo festa, uma pista de danceteria, com luzes e globo espelhado, surgia magicamente, para a diversão do anfitrião e de seus convidados. O closet da Barbie também ganhou destaque, contando com um sistema totalmente automatizado, por meio do qual era possível usar um dispositivo para escolher o sapato e a bolsa ideais para o look do dia. No entanto, os arquitetos vencedores foram Mika and Brian Kleinschmidt, responsáveis pela área externa e pelo quintal da Casa da Barbie. O espaço decorado pela dupla trazia churrasqueira, tobogãs e boias na piscina, um cantinho para as pranchas do Ken, grama cor-de-rosa por todos os cantos e um elegante B feito com arbustos e flores (Fig. 1).
Figura 1: Barbieland, no filme e na vida real. Imagens disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=NVIpIMqeJVM e https://www.yahoo.com/entertainment
A campanha de lançamento do filme fez uso da transmidialidade, em um processo de divulgação bastante abrangente, que mobilizou a indústria cinematográfica, canais de TV (principalmente o HGTV, que apresentou a série Barbie Dreamhouse Challenge), jornais, revistas e a própria empresa Mattel — que lançou uma coleção especial com as roupas do filme. Além disso, a atriz Margot Robbie participou de inúmeros eventos, nos Estados Unidos e no exterior, desfilando o invejado guarda-roupa da Barbie. Conforme o teórico Henry Jenkins, a transmídia é um movimento de expansão, em que “cada meio faz o que faz de melhor” (JENKINS, 2013, p. 141). O objetivo dessa estratégia de mercado é “atrair múltiplas clientelas, alterando um pouco o tom do conteúdo de acordo com a mídia” (JENKINS, 2013, p. 142). Portanto, o recurso transmidiático privilegia a “convergência das mídias” (JENKINS, 2013, p. 48), possibilitando o que ficou conhecido como “entretenimento 360º” (JENKINS, 2013, p. 189). Isso significa que um único produto pode ser acessado ao mesmo tempo, em múltiplas plataformas, e, hoje em dia, a Internet e as hipermídias facilitam esse processo.
No filme, a história de Barbie tem início quando a boneca se depara com acontecimentos estranhos à sua rotina mais-que-perfeita. Ela percebe, por exemplo, que, durante o banho, a água não esquenta. Além disso, ela não consegue mais flutuar e acaba caindo do telhado. Por fim, nesse inferno astral em que Barbie se encontra, ela nota que, ao tirar os sapatos de salto, seus calcanhares acabam tocando o chão. Essa sucessão de infortúnios leva a personagem a questionar a mesmice irretocável de seu dia a dia e pensar no inimaginável: a morte. Barbie revela suas inquietações às outras Barbies em várias ocasiões, mas suas desconfianças acerca da mortalidade só surgem em meio a uma festa, em que ela se diverte com as amigas, usando o figurino da linha Golden Dream, detalhe que acentua a ironia, no filme. Isso ocorre porque, durante a noite festiva, Barbie começa a acordar de seu sonho, imaginando o que poderia existir fora de seu mundo: Será que, naquele mundo cor-de-rosa, haveria espaço para pesadelos? Nesse aspecto, e guardando as devidas proporções, Barbie, ao recusar a imortalidade para descobrir a vida real, assemelha-se a Ahasverus, o judeu errante, protagonista do conto “Viver!”, escrito por Machado de Assis. Sendo assim, a heroína inicia sua trajetória ao abrir mão dos sapatos de salto, que se opõem ao mundo real, porque servem de metáfora para a fantasia e o faz-de-conta (Fig. 2).
Figura 2: A preferência de Barbie por sapatos de salto é posta à prova, no filme. Imagens disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=NVIpIMqeJVM
Na versão cinematográfica, a fada madrinha não dá escolha à Barbie, obrigando-a a recusar os sapatos de salto, para, finalmente, conhecer a verdade. Nesse momento, o formato de live-action, que mistura animação com a performance de atores e atrizes reais, ganha destaque, mostrando-se bastante apropriado para o enredo, afinal, Barbie, uma boneca, abandona o mundo de mentirinha para viver situações novas e inusitadas, no mundo de verdade. Em certa medida, esse início lembra a experiência vivida pela protagonista do conto “A bela e a fera ou a ferida grande demais”, da escritora Clarice Lispector, no qual uma socialite passa por uma experiência desconcertante, depois de ir ao salão de beleza. Acostumada a ser paparicada por todos, o motorista encarrega-se de levá-la e buscá-la mais tarde. No entanto, ele se atrasa e, enquanto espera, a mulher, ingênua e desacostumada ao convívio com pessoas comuns, é confrontada pelos perigos e pelas vicissitudes da vida nas ruas, longe da proteção de sua casa.
As aventuras experimentadas por Barbie oscilam entre ingenuidade e superação. Devido a isso, o trailer incentiva tanto os apoiadores quanto os críticos a assistirem ao filme: “Se você ama a Barbie este filme é para você. [...]. Se você odeia a Barbie este filme é para você” (BARBIE, 2023, grifo nosso). Além disso, em outra sequência irônica, o vilão, representado pelo ator Will Ferrell, parece incorporar as falas e os julgamentos dos acusadores mais ferrenhos de Barbie. De acordo com o personagem, Barbie é completamente despreparada e inapta para enfrentar os desafios da vida real e, por isso, o único objetivo dele é “colocar a boneca novamente na caixa” (BARBIE, 2023). Diante dessa atitude, a autonomia e a liberdade são realçadas, permitindo que Barbie seja “tudo o que ela quiser ser” (MERIGO, 2015).
No quesito moda, apenas os fãs mais obcecados conseguem distinguir quais são as roupas originais e quais trajes foram adaptados e lançados pelo filme. Isso mesmo! A Mattel lançou uma coleção completa, chamada Barbie: The Movie, na qual a boneca veste os figurinos usados pela atriz Margot Robbie, no longa. Aqui no Brasil, algumas dessas relíquias podem ser compradas pela bagatela de 650 reais. Considerando que a boneca Barbie já tem 74 anos, algumas alterações no figurino foram inevitáveis, a fim de conectar a produção cinematográfica ao público e contexto atuais. No entanto, a equipe do filme fez inúmeras pesquisas, com o objetivo de manter a identidade e o estilo de Barbie, reconhecidos no mundo inteiro. Para demonstrar essa sintonia fina, vamos analisar alguns exemplos, começando pelas roupas da coleção Barbie Day-to-night, que Margot Robbie usou em evento realizado na Coreia do Sul (Fig. 3). Evidentemente, naquela ocasião a maleta da Barbie não foi usada, dando lugar à minibolsa que acompanha o tailleur de executiva da boneca. No entanto, o acessório usado no filme é de mão (e não de ombro), adotando o estilo de uma bolsa que completa um vestido usado por Barbie (Fig. 3). Aliás, note-se também a semelhança entre os chapéus com fita cor-de-rosa e bolinhas brancas, nos dois trajes.
Figura 3: Margot Robbie na divulgação do filme, com roupas inspiradas principalmente na linha Barbie Day-to-Night. Imagens disponíveis em:https://br.pinterest.com/pin/353814114473394525/ e https://glamour.globo.com/moda/noticia/2023/07/margot-robbie-usa-looks-inspiradoras-na-boneca-barbie-para-evento-do-filme-na-coreia-do-sul.ghtml
Em uma das sequências mais comentadas do filme, a festa em Barbieland, Barbie usa uma roupa dourada, seguindo a tendência do lamê e do lurex, tecidos muito usados na década de 1970, em que as discotecas eram a marca registrada. Aliás, a modelito que inspirou o figurino do filme foi lançado em 1980, sob o título Barbie Golden Dream, em clara referência à moda que fazia sucesso nas pistas de dança. Por essa mesma razão, a festa do filme segue o mesmo embalo, com luzes, estrobos e globo espelhado — sem falar nos detalhes da coreografia, totalmente dancing days (Fig. 4).
Figura 4: Linha Barbie Golden Dream: no figurino original e na versão adaptada, usada no filme. Imagens disponíveis em: https://br.pinterest.com/pin/353814114473394525/
O sapato dourado, o tom do dourado mais claro, os paetês sobre o lamê, o modelo tomara-que-caia e a ausência da sobressaia branca diferenciam a roupa do filme do traje original de Barbie. Contudo, a essência é mantida. Esse procedimento também é adotado na confecção dos figurinos usados nas cenas em que Barbie e Ken andam de patins, no filme. O tecido-base, em tom de rosa choque, assim como as tonalidades que compõem o mosaico da roupa original de Barbie, na coleção de moda praia/piscina, são respeitados. O mesmo ocorre com o contraste de cores fosforescentes, que ditaram tendência, nos anos 1980, quando os patins viraram febre — entre adultos, crianças e adolescentes. Sim. Não foi apenas a Barbie que usou esses divertidos acessórios. Em 1989, no Brasil, a boneca Lu Patinadora também fez sucesso. E, por falar em patins, no filme eles obedecem à paleta original de cores néon. A única diferença é que o uso do laranja é reduzido, fazendo prevalecer o verde (Fig. 5).
Figura 5: Os figurinos de Barbie e Ken, no filme, inspirados na moda praia e na linha Hot Skatin, da Mattel. Imagens disponíveis em: https://revistaquem.globo.com/Series-e-filmes/noticia/2022/06/ryan-gosling-e-margot-robbie-andam-de-patins-em-gravacoes-de-barbie.htmle https://br.pinterest.com/pin/353814114473394525/
Com as roupas no estilo Western, pode-se perceber o mesmo cuidado da equipe de produção do filme, já que o figurino do casal manteve o design dos chapéus e, nos outros detalhes, combinou características das roupas originais de Barbie e Ken. O clássico preto-e-branco predominou no figurino usado por Ryan Gosling. As botas brancas da boneca ditaram a cor dos sapatos dos dois personagens do filme e as franjas da camisa de Ken são uma alusão ao tecido riscado e canelado da Barbie original. Por fim, considerando que a roupa de Margot Robbie foi totalmente reformulada, para adotar um estilo mais contemporâneo, note-se que o figurino do casal combina os chapéus, as botas e os lenços no pescoço (Fig. 6).
Figura 6: Os figurinos de Barbie e Ken, no filme, inspirados na linha Western, da Mattel. Imagens disponíveis em: https://br.pinterest.com/pin/179229260140453593/ e https://www.thesun.co.uk/tvandshowbiz/18987251/margot-robbie-and-ryan-gosling-step-out-in-cowboy-outfits-as-they-film-barbie-movie/
Quanto à moda, não podia faltar, no filme, uma referência explícita ao maiô preto-e-branco com listras, que corresponde ao modelo vestido pela boneca, no ano de seu lançamento, em 1959. Um dos trailers mostrava esse traje de banho, em uma sequência alusiva ao surgimento da Barbie, que chegou para substituir os bebês tradicionais. Parodiando o filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, depois que as meninas conhecem a boneca Barbie, todas quebram seus bebês de brinquedo, protagonizando uma revolução em massa. Por essa razão, o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) censurou o trailer, alegando que o material de divulgação apresentava “cenas de não-urbanidade, ausência de boas maneiras ou ato violento/inseguro” (FREITAS, 2023). Entretanto, essa medida e o debate que foi gerado em torno dela foram desnecessários, afinal o Conar recomendou que o material publicitário fosse recomendado apenas para maiores de 12 anos, coincidindo com a faixa etária que já tinha sido indicada pela produção do filme (Fig. 7).
Figura 7: O surgimento da boneca Barbie marca o fim da era das baby dolls. Imagens disponíveis em:https://www.h2lcosplay.com/pt-fr/products/maio-barbie-listras
No Brasil, a baby doll era conhecida como bebezão e eu nunca tive uma boneca desse tipo. Aliás, é justamente por representar uma ruptura em relação ao padrão tradicional de comportamento geralmente associado ao gênero feminino que Barbie merece ser celebrada. Antes dela, as meninas eram levadas a acreditar que deviam crescer, arrumar um marido, ter filhos e cuidar da casa e da família. Metaforicamente, os bebês de brinquedo significavam esse anseio ou a necessidade de cumprir essas tarefas impostas pela sociedade patriarcal. Contudo, a criação da boneca Barbie desorientou a sociedade, passando a mensagem de que as meninas só deveriam se tornar mulheres. Não estava em questão o fato de que, no futuro, elas se tornariam mães, esposas e donas de casa. Portanto, depois de Barbie, as meninas podiam sonhar com o dia em que se tornariam “tudo o que quisessem ser” e, sem dúvida, em certo sentido, isso ampliou os horizontes do gênero feminino.
E continuou sendo assim, ao longo das décadas, já que, com o passar do tempo, Barbie foi se adaptando aos novos costumes e tendências da sociedade. Ano após ano, a boneca desfilou incontáveis estilos de roupas e penteados, representando a figura feminina não apenas nos tradicionais estereótipos ligados ao gênero, como o ballet ou as sereias, por exemplo, mas também garantindo um lugar em ambientes predominantemente masculinos, como o mercado empresarial (no caso da executiva, da linha Barbie Day-to-Night) ou o Velho Oeste (com a boneca cowgirl, da linha Barbie Western). Outro exemplo que demonstra a versatilidade da boneca, no que diz respeito ao cenário sociocultural, é a Barbie ginasta, com macacão de lycra, cinto e polainas, bem ao estilo Jane Fonda. Evidentemente, no início do século XXI, a preocupação da Mattel com a diversidade aumentou, de modo que, em 2015, a empresa decidiu associar o slogan “Tudo o que você quer ser! [You can be anything, em inglês]” (MERIGO, 2015) a uma nova linha, a Barbie Fashionistas (Fig. 8), com “170 modelos” (BRITO, 2020). O vídeo de lançamento da campanha é hilário e pode ser acessado neste link: https://www.b9.com.br/61155/nova-campanha-de-barbie-diz-que-as-meninas-podem-ser-o-que-elas-quiserem/. A peça publicitária é estrelada por várias atrizes-mirins que representam diferentes profissões, em situações de improviso que surpreendem a todos. No início do anúncio, surge a pergunta: “O que acontece quando as meninas são livres para imaginar tudo o que elas podem ser?” (MERIGO, 2015, tradução nossa). A resposta vem ao final, com esta afirmação: “Quando uma menina brinca com Barbie, ela imagina tudo o que ela pode se tornar” (MERIGO, 2015, tradução nossa).
Figura 8: A diversidade representada na linha Barbie Fashionistas. Imagem disponível em:https://www.dw.com/pt-br/barbie-%C3%ADcone-feminista-ou-ideal-t%C3%B3xico-de-beleza/a-66284416
Nessa nova coleção, Barbie e Ken ganham perfis distintos: negro, com vitiligo, cadeirantes, com próteses nas pernas, com mechas, com cabelos coloridos e já existe até uma Barbie sem cabelo! O propósito dessa variação é fazer uso do princípio da empatia, buscando uma identificação imediata com os consumidores, que, por sua vez, têm identidades muito diferentes. Com isso, o índice de vendas voltou a aumentar. De acordo com as estatísticas divulgadas pela revista Veja, em 1959, ano de lançamento da Barbie, a Mattel vendeu “cerca de 300 mil” bonecas (BRITO, 2020). Já, em 2020, com a reformulação que seguiu o princípio da diversidade, “as vendas subiram 29%” (BRITO, 2020). Ao longo de toda a trajetória da boneca mais famosa do mundo, “a Mattel estima ter vendido 1 bilhão de Barbies” (BRITO, 2020).
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, desde o início a Mattel tentou dar opção aos consumidores, oferecendo a Barbie e o Ken nas versões loira ou morena. Sim! Essa opção já existia em 1959, quando a boneca foi lançada — e depois o feito se repetiu, em 1961, quando Ken foi criado (Fig. 9).
Figura 9: Barbie e Ken originais, disponíveis nas versões loira ou morena. Imagens disponíveis em: https://studhistoria.com.br, https://www.metropoles.com, https://www.amazon.com.br e https://www.cnnbrasil.com.br
Bem, se sempre foi possível escolher entre as versões loira e morena, por que Barbie e Ken são associados ao cabelo loiro e ao biotipo europeu, no mundo todo? A resposta é simples: O preconceito e o rótulo não foram criados pela Mattel, mas pela sociedade, que, influenciada pelos costumes patriarcais, promoveu os bonecos de cabelo loiro! Hoje, esse panorama felizmente mudou. No entanto, entre os anos 1960 e 1980, o modelo caucasiano era supervalorizado. Inclusive, os Estudos Culturais explicam esse fenômeno, argumentando que esse padrão reflete o tipo físico dos colonizadores e também o ideal perseguido pelos povos colonizados, em uma tentativa de se igualar às sociedades hegemônicas, no que é conhecido como complexo de colonizado (MEMMI, 2007).
Aliás, revisitando a história de Barbie, descobrimos as qualidades que os opositores da boneca tentam ocultar. Originalmente, Barbie foi inspirada na boneca alemã Bild Lilli, que era uma secretária executiva e que tinha sido criada em 1955, por Max Weisbrodt. A ideia de criar uma boneca que representasse uma adulta, e não um bebê, foi da mulher do dono da Mattel, quando ela assumiu o controle da empresa, na ocasião em que o marido adoeceu. Apenas esse fato, aliás, já era bastante significativo, pois, na época, a sociedade não via com bons olhos a inserção das mulheres no mercado de trabalho, sobretudo na área empresarial. No entanto, Ruth Handler balançou os alicerces, quando decidiu criar uma boneca em homenagem à sua filha, Barbara Handler (ou, simplesmente, Barbie), com o intuito de permitir que as meninas escolhessem seus próprios destinos. Dois anos depois, em 1961, a executiva lançou o boneco Ken, que foi inspirado em seu filho, Kenneth Handler (UMA BREVE HISTÓRIA DE...., 2023). Sem dúvida, essa ordem, que privilegia o gênero feminino, é condizente com os planos da senhora Handler, afinal, já que Barbie antecedeu Ken, ele se tornou uma espécie de coadjuvante na história da boneca, invertendo assim a hierarquia imposta pela sociedade patriarcal. Como os pôsteres de divulgação do filme fizeram questão de destacar, “Barbie é tudo” e “Ele é apenas o Ken” (CASTRO, 2023) ((Fig. 10):
Figura 10: Pôsteres de divulgação do filme Barbie. Imagem disponível em:
Então, a questão passou a ser uma só: Qual Barbie você gostaria de ser?
REFERÊNCIAS
BARBIE. Direção de Greta Gerwig. EUA: Warner Bros., Mattel, LuckyChap Entertainment, Mattel Films e Heyday Films; Warner Bros., 2023. 1 DVD (104 min); son.
BRITO, S. A aposta na diversidade leva a boneca Barbie de volta ao topo. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/cultura/a-aposta-na-diversidade-leva-a-boneca-barbie-de-volta-ao-topo>. Acesso em: 12 dez. 2020.
CASTRO, M. Com novo trailer de 'Barbie', web se diverte comparando personagens femininas aos 'Kens'. Disponível em:
<https://extra.globo.com/entretenimento/noticia/2023/04/com-novo-trailer-de-barbie-web-se-diverte-comparando-personagens-femininas-aos-kens.ghtml>. Acesso em: 1º set. 2023.
FREITAS, B. Conar suspende exibição do teaser de Barbie por "cenas de não-urbanidade". Disponível em:
<https://www.opovo.com.br/vidaearte/cinema/2023/07/09/conar-suspende-exibicao-do-teaser-de-barbie-por-cenas-de-nao-urbanidade.html>. Acesso em: 9 jul. 2023.
JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2013.
MEMMI, A. Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
MERIGO, C. Nova campanha de Barbie diz que as meninas podem ser o que elas quiserem. Disponível em: <https://www.b9.com.br/61155/nova-campanha-de-barbie-diz-que-as-meninas-podem-ser-o-que-elas-quiserem/>. Acesso em: 30 nov. 2015.
UMA BREVE HISTÓRIA DE.... Temporada 1, episódio 22. Programa exibido pelo History Channel, em 9 jul. 2023.
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* Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.
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