DALTON TREVISAN: O CORTE QUE NUNCA FECHA
- Verônica Daniel Kobs

- há 12 horas
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Um ano sem Dalton Trevisan. No dia 9 de dezembro de 2024, Curitiba amanheceu mais nublada do que o normal, em luto pela perda de um personagem ilustre: um vampiro que dava longos passeios, mesmo à luz do dia! Essa controvérsia caracteriza a obra de Dalton Trevisan, que permanece viva na memória de brasileiros, paranaenses e curitibanos. Sua escrita, marcada pela brevidade cortante e pela ironia do cotidiano, continua a provocar dor e fascínio e é justamente nesse espírito que se inscreve esta homenagem, que evoca a presença inconfundível do Vampiro de Curitiba, por meio da intensidade de seus minicontos, que seguem abrindo fissuras na sensibilidade de cada leitor.

Crédito da imagem original:
Há quem diga que toda boa literatura começa com uma ferida. Mas a de Dalton Trevisan vai além: ela começa com uma mordida. Rápida. Clandestina. Quase imperceptível. “Dividido entre os dois amores, ele portava no bolso direito a medalhinha de N. S. do Perpétuo Socorro, fé de mulher. E, no esquerdo, uma caixa de bolinhas alucinantes, ciência da outra” (Trevisan, 1994b, p. 119).
A mordida do Vampiro de Curitiba é sempre fatal. Porque a literatura dele não seduz: ela ataca. E o faz com um grau de precisão cirúrgica que alcança o cruel.
— Casei com uma sueca. Bem minha mãe disse: Moça loira? De olho azul? Não é para você, meu filho. Seis meses fomos felizes. Uma noite chego em casa. E a minha loira: Até ontem, eu te amei. Hoje, não mais. Adeus. Já de malinha no corredor. O que eu podia fazer?
— ...
— Só matar. E foi o que eu fiz. (Trevisan, 2004, p. 63)
Segundo a tradição, o vampiro precisa ser convidado a entrar. Trevisan, não. Ele invade — pelas frestas do tédio, do sexo rotineiro, da violência doméstica. Sua literatura não pede permissão. Ela se impõe com a força do que é reconhecível demais para ser ignorado: “— Se eu fui feliz no casamento? Só nos três primeiros dias. Depois aquele inferno que dura até hoje” (Trevisan, 1997, p. 21).
Um conto de uma página, uma frase de seis palavras, uma epifania amarga que dura menos que um beijo — mas deixam marcas mais profundas do que um romance inteiro.
O marido, ao telefone:
— Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto — eu estou enforcado. (Trevisan, 1994a, p. 88)
O título de Vampiro de Curitiba não é apenas uma curiosidade biográfica transformada em epíteto midiático. É uma chave de leitura. Dalton era um predador discreto. Não inventava mundos fantásticos, não era afeito a grandes estruturas épicas. Ele farejava a banalidade.
O marido:
— De que adianta ir ao salão mais caro?
— Ai, amor, menos que...
— Amanhã teu cabelo está que é um chapéu velho! (Trevisan, 2004, p. 84)
Como um vampiro, Dalton vivia daquilo que a maioria das pessoas finge não ver. Mesmo quando o assunto era Curitiba, a crítica chegava de forma implacável.
Carnaval curitibano
De gralha azul, Sete Quedas, araucária fala o samba, não dá ritmo, não tem rima.
São quatro na ala das baianas, cada uma com fantasia diferente, usada em anos anteriores.
Na exibição diante do júri a garoa fina murcha as plumas do destaque da escola Embaixadores da Alegria.
A odalisca de peito nu e roxa de frio desacata o fiscal: Qual é, cara? Nunca viu?
O público não canta nem dança, a mesma cara triste conservada em formol.
A rua é só cheiro de pipoca. (Trevisan, 2004, p. 101)
Dalton não inventa histórias com grandes arcos dramáticos. Ele se infiltra em situações já em decomposição: um casamento desgastado, uma relação incestuosa, uma vizinhança que finge não ouvir gritos à noite.
— É refinada feiticeira. Coração comido de bichos, ela tem um buraco no peito. Sabe, no dia em que me deixou?
— Não me diga.
— Só de traidora degolou o casal de garnisés.
— Puxa.
— Estrangulou o canário no arame da gaiola.
— ...
— E furou o olho do peixinho vermelho. (Trevisan, 1994b, p. 123)
A matéria da sua literatura é o que muitos autores evitam: o desejo triste, a sexualidade sem poesia, a violência corriqueira, o cinismo doméstico. E a estética que ele constrói a partir disso não é ornamental — é hematófaga.
Ela recebe a visita da amiga com o filho de oito anos. João sempre gentil:
— Quer ver os gatinhos?
Pega o menino pela mão, rumo ao quintal. Quinze minutos, o piá de volta.
Lívido e trêmulo. Mais: transfigurado. Não sai de perto da mãe. De noite
acorda aos gritos. A mãe pergunta o que...
— Aquele homem esquisito.
Três dias com febre, nunca mais o mesmo menino. (Trevisan, 1994b, p. 45)
Uma economia formal que não é minimalismo gratuito, mas um projeto estético: escrever com o mínimo, para atingir o máximo:
O porteiro do parque de diversões Cometa se gaba de que a menina paga com o corpo as muitas voltas na roda-gigante. (Trevisan, 1997, p. 64)
Adormecida ao lado, João a insulta: água você secou, laranja você murchou, leite coalhou, rosa se despetalou, vinho azedou; sumo eu te engoli, pó eu te varri, caroço eu te cuspi. (Trevisan, 1994b, p. 55)
Sua prosa não insinua, não contorna, não sugere. Ela diz. Com todas as letras. Com todas as lascas de osso. Cada frase carrega o essencial da cena e da perversão. Uma brutalidade sem verniz.
Ela disse que não. Ele pediu, pelo amor da santa mãezinha, em nome de Jesus Cristinho. Segunda vez ela disse não. Não, ela disse.
Um cachorro danado que estala os dentes, João queria morder o próprio rosto. De repente o revólver explodiu na praça e levantou um bando de pombas.
Tão linda. Maria sangrava por três bocas. Ela já não era – um vestido vermelho fora do corpo. (Trevisan, 1994b, p. 19)
Dalton Trevisan morde para calar. Ou para revelar. Porque, no fundo, a mordida do Vampiro é uma forma de interromper a farsa — o teatro social do afeto, da decência, da felicidade doméstica.
A mãe de quatro meninas estende no varal as muitas calcinhas coloridas. Ao lado, a caçula de dois anos:
— Quanta calcinha, né, mãe?
— A culpa é de você.
— De mim?
— Bem eu queria estar aqui pendurando uma cuequinha. (Trevisan, 2004, p. 62)
Suas mini-histórias são espelhos trincados da condição humana. Não há redenção, nem consolo. Há apenas constatação. E isso basta. “— Casei com uma puta do Passeio Público. Tinha tanto piolho que, uma noite dormia de porre, botei um pó no cabelo dela. Dia seguinte, lavou a cabeça e ficou meia cega” (Trevisan, 1994a, p. 61).
A literatura de Dalton Trevisan não precisa gritar. Ela sussurra e morde ao mesmo tempo:
O amor é uma corruíra no jardim — de repente ela canta e muda toda a paisagem. (Trevisan, 1994b, p. 5)
— Na cama o João vem pra cima de mim. Uma transa lá entre ele e a minha perna, não estou nem aí. (Trevisan, 1994b, p. 16)
Seu João, perdido de catarata negra nos dois olhos:
— Meu consolo que, em vez de nhá Biela, vejo uma nuvem. (Trevisan, 1994b, p. 127)
Trevisan é um ponto fora da curva, fora do cânone domesticado, e ele parecia gostar disso. Os efeitos da mordida do vampiro nunca cessam, porque suas histórias, embora breves, são letais. E continuam em nós, como um vírus.
— Sempre vaidoso, o meu velho. Primeiro me fez ir ao alfaiate. Estreitar um palmo na cintura da calça.
— Tão acabadinho, coitado.
— Agora vou ao sapateiro. Mais três furos no cinto.
— Será que desconfia?
— Bem iludido, o pobre. Daquela cama se levanta nunca mais. (Trevisan, 1994b, p. 127)
Que essa “mordida fatal” nos acompanhe e continue nos lembrando de que a grande literatura não consola, nem acalma. Ela inquieta, perturba e transforma.
Na cama, diz o marido:
— Você é gorda, sim. Mas é limpa.
— ...
— Você é feia, certo? Mas é de graça. (Trevisan, 1997, p. 62)
Dalton Trevisan nunca quis nos agradar. E isso ele conseguiu. Ninguém sai ileso depois de um encontro com o Vampiro. Alguns sangram na hora. Outros só percebem depois. Venenos bem destilados são silenciosos: quando a paralisia chega, a vítima se dá conta de que nada será como antes.
Ao sair do banheiro, ele cruza com ela na cozinha.
— Oi — ela diz.
Já na porta, sem se virar:
— Oi — ele diz.
Assim ano após ano até que, um dia, ela se vai. Toda manhã ele entra na cozinha e diz “Oi”. Mas você responde? Nem ela. (Trevisan, 1997, p. 101)
Este é o efeito de uma mordida fatal. O que a literatura de Dalton Trevisan nos deixa não é uma mensagem. Não é uma lição. Não é sequer um retrato. É um desconforto.
Se isso ainda dói, é porque o dente entrou fundo. E não adianta se fazer de forte. Trevisan não erra o golpe. Portanto, se você saiu inteiro, é porque não leu direito.
REFERÊNCIAS
TREVISAN, Dalton. Dinorá: novos mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1994a.
TREVISAN, Dalton. Ah, é? Rio de Janeiro: Record, 1994b.
TREVISAN, Dalton. 234. Rio de Janeiro: Record, 1997.
TREVISAN, Dalton. Arara bêbada. Rio de Janeiro: Record, 2004.
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* Verônica Daniel Kobs: Professora e Coordenadora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora Visitante do Mestrado e do Doutorado da Florida University of Science and Theology. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.
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