O CINEMA OCULTO: FRAGMENTOS FORA DE CENA
- Verônica Daniel Kobs

- há 1 hora
- 8 min de leitura
Você vê todos os filmes até o final, ou só faz isso com os filmes da Marvel?
Esperar até os últimos segundos de um filme pode parecer apenas um gesto de curiosidade ou hábito, mas, na verdade, revela uma postura diante da própria experiência cinematográfica. É justamente nesse ponto que a distinção entre diferentes modos de recepção se torna evidente.
Então, pare e pense: “Que tipo de espectador você é?”
1. Aquele que sai da sala no mesmo instante em que a história acaba.
2. Aquele que se levanta logo que a história acaba, mas fica se enrolando um pouco, saindo da sala devagar, para ver se não aparecerá nenhuma cena extra.
3. Aquele que fica até o fim do filme (e não da história) — e isso inclui não apenas os créditos, mas também a logomarca dos realizadores, na última linha.
Quando se assiste a um filme, há o encerramento da narrativa, o desfecho da trama e o destino dos personagens. Entretanto, o filme não termina nesse momento. Os créditos iniciais e finais configuram prolongamentos significativos da obra, uma vez que não são meros apêndices, mas dispositivos estéticos, simbólicos e narrativos que merecem a mesma atenção dispensada às imagens centrais. No cinema, como em toda arte, nada é gratuito: a escolha de uma cor, de uma tipografia, de uma canção ou de uma imagem carrega intencionalidade e sentido.
É possível compreender os créditos como aquilo que Gérard Genette, no campo dos estudos literários, denominou paratexto. Assim como títulos, prefácios e epílogos moldam a leitura de um livro, os créditos moldam a recepção de um filme. Eles inauguram atmosferas, instauram pactos de expectativa, prolongam emoções, condensam temas ou, ainda, redirecionam o olhar do espectador. Por isso, assistir apenas até o clímax narrativo equivale a interromper uma experiência estética antes de seu verdadeiro fim.
Os créditos iniciais, em particular, funcionam muitas vezes como prólogos visuais. Em Lisbela e o Prisioneiro, eles já anunciam o tom da obra: uma estética que mistura leveza, humor e teatralidade, preparando o público para o que a própria Lisbela apresenta como “comédia romântica com aventura”.
“Está começando”
O jogo metalinguístico impera, no filme, desde o começo. A primeira cena já mostra Lisbela e seu noivo no cinema e, ao mesmo tempo em que o filme a que eles foram assistir se inicia, também se inicia Lisbela e o prisioneiro. Enquanto elenco e personagens são apresentados, por meio dos letreiros, a voz de Lisbela vai explicando a função de cada um dentro da trama.
Já em A Rainha Diaba, os créditos confeccionados artesanalmente com cartolina, decalques e purpurina carregam a mesma irreverência e excesso que caracterizam o filme, sinalizando desde o primeiro instante uma estética de marginalidade e resistência (Fig. 1).

Figura 1: Créditos iniciais do filme Rainha Diaba. (Fonte: Foto tirada por VDKobs, durante a reprodução do filme).
Em Vidas Secas, a roda de carroça girando no início traduz de maneira simples, mas contundente, a circularidade da miséria e da sobrevivência no sertão: o movimento repetitivo da roda antecipa o ciclo de privação que atravessará toda a narrativa (Fig. 2)

Figura 2: Créditos iniciais do filme Vidas Secas. (Fonte: Instituto Moreira Salles).
De modo semelhante, O Pagador de Promessas insere já nos créditos a peregrinação de Zé do Burro, de modo que a jornada física e espiritual do personagem se torna o próprio fio condutor do filme desde antes de a história se desenvolver (Figs. 3 e 4). Depois disso, enquanto aparece o letreiro inicial, é mostrada a peregrinação do personagem, que passa por lugares distintos, à noite e durante o dia, o que dá maior dimensão a sua fé e também à tragédia desencadeada pela recusa do padre em aceitar que Zé entre na igreja com a cruz. Esse enaltecimento da fé e da tragédia, consequentemente, seria a primeira função do começo do filme, que ainda cumpre outros três papéis importantes: um deles é a contextualização, para que o espectador compreenda melhor o que está acontecendo e por quê; o outro é retratar uma parte da cultura brasileira, fortemente influenciada pela africana, no momento em que são mostrados rituais comuns em terreiros; e o terceiro, como menciona Sábato Magaldi, é influenciar o espectador através do apelo afetivo da cena, já que a ação é acompanhada pela perspectiva de Zé.

Figura 3: Créditos iniciais do filme O Pagador de Promessas. (Fonte: Cinelimite).

Figura 4: Créditos iniciais do filme O Pagador de Promessas. (Fonte: Radio France).
Em alguns casos, os créditos de abertura ganham valor de marca registrada. A série 007 consagrou-se como exemplo incontornável: cada filme inicia com uma sequência estilizada que articula elementos gráficos, figuras femininas, ícones da espionagem e, sobretudo, uma canção-tema inédita. Essa canção se tornou assinatura identitária, ao mesmo tempo que projeta o tom emocional da obra. Como observou certa vez o teórico americano David Bordwell, em um dos muitos eventos da sétima arte, a estilização audiovisual cumpre aqui um papel narrativo: ela funciona como uma espécie de prelúdio sensorial, capaz de preparar o espectador tanto para o glamour quanto para a tensão da espionagem.
No filme de 2020, 007: Sem Tempo para Morrer, os efeitos especiais também ganham ênfase: estátuas caem, rachando-se pela ação do tempo. Na tentativa de conter essa corrosão, algumas cenas mostram tatuagens sobre um corpo, fazendo referência a algo perene e marcante. Em uma menção direta à história do filme, os tiros que saem das armas formam os rostos dos personagens principais, assim como dezenas de armas atirando acabam formando uma sequência de DNA (Fig. 5), a qual, por sua vez, corresponde às imagens dos clones e das múltiplas seguras que se formam em um calidoscópio.

Figura 5: Créditos iniciais do filme 007: Sem Tempo para Morrer.
Se os créditos iniciais preparam o terreno, os finais funcionam como epílogos que retomam, reforçam ou deslocam sentidos. Em Cidade de Deus, a inserção de fotografias reais dos personagens em quem a ficção se baseou devolve ao espectador a consciência de que a violência retratada não é apenas criação artística, mas também registro social. Algo semelhante acontece em Aliança do Crime (Black Mass), quando imagens documentais dos criminosos e agentes envolvidos surgem nos créditos, sublinhando o vínculo histórico da narrativa com acontecimentos que realmente marcaram vidas e trajetórias (Fig. 6). Em ambos os casos, os créditos operam como retorno ao real, uma estratégia que confere peso ético à experiência estética.

Figura 6: Créditos finais do filme Aliança do Crime.
Outras vezes, os créditos finais estabelecem uma relação intrínseca com os iniciais e com outras cenas do filme (Fig. 7), reforçando símbolos e identidades. É o que acontece em Uma Mulher Fantástica, filme em que as Cataratas, logo na abertura, aparecem tingidas com as cores do arco-íris, numa clara referência à bandeira LGBTQIA+. O gesto é retomado ao final, quando os créditos sobem nas mesmas seis cores, embalados pela canção “Time”, do Alan Parsons Project. Assim, o filme se abre e se encerra com uma marca de identidade e resistência, reafirmando politicamente a luta da protagonista e da comunidade que representa.

Figura 7: Cena do filme Uma Mulher Fantástica: a iluminação multicolorida dialoga com as cores do arco-íris, usadas também nos créditos iniciais e finais.
(Fonte: Papo de Cinema).
Isso também ocorre no filme Clube de Compras Dallas, já que os créditos funcionam como comentário sobre a própria obra. Ao final, os dados estatísticos que são apresentados reiteram a dimensão social e política da narrativa. O espectador, ainda impactado pelo drama da personagem de Matthew McConaughey, é confrontado com números que revelam a persistência da epidemia de HIV e a luta por acesso a medicamentos. O gesto traduz o que Bazin identificava como a vocação documental do cinema: mesmo quando ficcional, o filme traz consigo uma força de testemunho.
Há, ainda, os créditos que se projetam para o futuro. O cinema contemporâneo de franquias consolidou a prática de inserir ganchos narrativos após a conclusão da trama. O encontro entre Amanda Waller e Bruce Wayne, ao final de Esquadrão Suicida, é um caso exemplar: longe de ser mero adendo, a cena funciona como elo entre filmes e promessa de continuidade, fazendo dos créditos um espaço estratégico de expansão do universo narrativo.
Em outros casos, os créditos finais trabalham na chave do espetáculo e da descontração. Jackie Chan popularizou esse recurso ao incluir, após filmes marcados por ação intensa, erros de gravação, cortes alternativos e bastidores cômicos. Essa prática não apenas humaniza o herói — ao mostrar suas falhas e acrobacias malsucedidas —, mas também cria um pacto afetivo com o público, prolongando o prazer da narrativa por meio do humor. A Pixar, por sua vez, fez dos créditos um espaço de criatividade, seja com cenas extras de personagens em situações inusitadas, seja com a inserção de detalhes visuais que expandem o universo diegético. Como nota Ismail Xavier, o cinema popular contemporâneo busca constantemente fidelizar o espectador por meio da expansão narrativa: nos créditos, o filme ganha uma segunda vida, mais lúdica, que ultrapassa a rigidez do enredo principal.
Historicamente, os créditos começaram a ganhar autonomia estética sobretudo a partir da década de 1950, quando Saul Bass inovou com a abertura de O Homem do Braço de Ouro. A partir de então, eles deixaram de ser um espaço burocrático e passaram a constituir peças gráficas e narrativas por si mesmas, traduzindo visualmente temas e atmosferas.
Aliás, hoje, o conceito de “música do filme” se banalizou e corresponde a qualquer música que acompanhe uma cena marcante. Porém, tradicionalmente, a música do filme é aquela que começa quando a história termina. Portanto, ela só é revelada nos créditos finais. Sua função é dialogar com o tema do filme. Vejamos dois exemplos:
1. Em Clube de Compras Dallas, os créditos sobem ao som de “Life is strange”, da banda T-Rex.
2. Em Lisbela e o Prisioneiro, a música que embala os créditos é “O amor é filme”, de José Paes de Lira.
Não lembra? Então é porque você não assistiu aos créditos!
Nos dois casos, a música tem um papel crucial e resume muito bem tudo o que você acabou de ver. Também nos dois casos, as letras são bonitas, sensíveis e realçam momentos importantes da história. O desafio está lançado: veja ou reveja estes dois filmes (Clube de Compras Dallas e Lisbela e o Prisioneiro), mas, desta vez, até o finalzinho. E, se for assistir usando o Netflix, seja corajoso... Quando a tela diminuir, clique nela novamente, para que os créditos não desapareçam de vista. Aliás, no caso do filme brasileiro, se você não ficou até o final, perdeu o melhor da história, pois o elemento-chave da história está na cena pós-crédito!
É isso! A análise dos créditos revela que eles não constituem simples ornamentos, mas dispositivos que condensam e expandem sentidos. Seja ao antecipar o universo narrativo, ao confrontar a ficção com o real, ao instaurar circularidades simbólicas ou ao anunciar desdobramentos futuros, cada detalhe — da tipografia à paleta cromática, da canção escolhida ao ritmo da montagem — carrega densidade semântica. Portanto, nos créditos, a linguagem cinematográfica encontra uma de suas formas mais sutis de dialogar com a narrativa.
O gesto de permanecer até o fim, portanto, não é mero capricho de cinéfilo, mas reconhecimento de que um filme só se conclui quando o último nome é mostrado na tela. Devemos ver os créditos por várias razões: para ouvir a música do filme, para fazer relações com partes da história, para ver se há alguma cena extra ou não e, claro, para saber mais do filme: Quem fez o papel do policial? Quem fez a dublagem? Qual é a música daquela cena que você amou? Quem foi o responsável pela fotografia primorosa?
Dê crédito a todos eles!
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* Verônica Daniel Kobs: Professora e Coordenadora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora Visitante do Mestrado e do Doutorado da Florida University of Science and Theology. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.
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