DALTON & POTY: DO INFINITESIMAL AO INFINITO
- Verônica Daniel Kobs
- 14 de jun.
- 18 min de leitura

Entre a palavra e o traço: uma introdução
Ao colocar em diálogo os contos e haicais de Dalton Trevisan e os desenhos de Poty Lazzarotto, parte-se do pressuposto de que ambos os artistas operam a partir de procedimentos formais que tensionam as escalas do mínimo e do máximo. O termo infinitesimal remete ao gesto da síntese extrema, da captura do instante, do detalhe que, no limite, poderia passar despercebido: o microacontecimento, o fragmento visual, a percepção fugaz, a linha mínima, o verso breve. É nesse território da contenção e do rigor formal que tanto o haicai quanto o traço trabalham. Contudo, essa escolha estética não resulta em empobrecimento expressivo; ao contrário, é justamente a partir desse recorte mínimo que se abre o acesso ao infinito — entendido aqui como a expansão do sentido, da imaginação e da sensibilidade.
Assim, o que se observa na confluência entre o conto ou haicai e o desenho é uma arquitetura poética que se baseia na lógica do essencial. Em outras palavras, trata-se de um artifício que, ao reduzir, amplifica. Desse modo, o infinitesimal não é apenas uma questão de escala formal, mas uma estratégia que nos permite acessar aquilo que transborda a palavra e a imagem, projetando-se para o campo ilimitado da experiência estética.
Nesse contexto, verbal e visual protagonizam uma simbiose criada por duas figuras centrais da cultura paranaense: o escritor Dalton Trevisan (1925-2024) e o artista plástico Poty Lazzarotto (1924-1998). A partir da análise de suas respectivas linguagens, este estudo investiga a representação da realidade pela palavra, na ficção literária; e a condensação do conto ou do haicai em imagem. No centro dessa trajetória, que se abre com as imagens vivas, da realidade, e se fecha com as imagens criadas por Poty, estão os contos e os haicais de Dalton. Para discutir esse caminho, os temas deste ensaio apresentam-se divididos em três seções: “A sintaxe da síntese: no princípio era o verbo...”; “Representações do real instantâneo”; e “Arquiteturas da brevidade”. Nessa estrutura, serão usados os pressupostos de alguns teóricos, como Paulo Franchetti, Irina Rajewsky, Lucia Santaella, Winfried Nöth e Jacques Aumont, além de enfatizar as características da metáfora e da caricatura.
1. A sintaxe da síntese: no princípio era o verbo...
Embora Dalton Trevisan também tenha escrito um romance, foram os contos e os haicais que lhe deram maior fama. Ano após ano, o autor revisitava suas histórias, cortando palavras e reduzindo-as ao mínimo essencial. A economia linguística era uma espécie de compulsão, que, com o tempo, acabou formando o par perfeito com o impacto causado pelas tragédias urbanas, encenadas diariamente, por João e Maria.
Sobretudo a partir dos anos 1990, os contos de Dalton Trevisan se transformaram em minicontos e depois em haicais, que usavam a prosa em detrimento do verso. Apesar disso, os haicais do Vampiro de Curitiba mantiveram alguns de seus elementos de base, pois eram simples na forma, sintéticos na ideia e contundentes na mostra de instantes do cotidiano.
Segundo Paulo Franchetti: “Foi Guilherme de Almeida quem tornou o haicai conhecido no Brasil, nas décadas de 1930 e 1940” (Franchetti, 2008, p. 261). Porém, o gênero ia se modificando para se adaptar ao estilo de cada novo dono que encontrava pelo caminho. Sem dúvida, uma mudança salutar ocorreu durante o Concretismo, quando “Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, [...] a partir de 1955, difundiram no Brasil as ideias de Pound e fizeram da reflexão sobre o ‘princípio ideogramático de composição’ [...]” (Franchetti, 2008, p. 262, grifo no original).
Já em uma nova fase, as feições do haicai se diluíram ainda mais e o gênero ganhou tonalidades bem mais variadas, passando gradualmente do verso à prosa. Na lista dos escritores que revitalizaram o haicai no Brasil, há nomes de peso, como Pedro Xisto, Paulo Leminski, Millôr Fernandes, Helena Kolody, Mário Quintana e, claro, Dalton Trevisan. De acordo com a crítica especializada, nessa fase a contribuição de Leminski se destacou perante as outras, “combinando a ênfase na técnica da montagem ideogramática [...] com o apelo [...] de trazer a poesia para dentro do cotidiano [...]” (Franchetti, 2008, p. 266).
Aliás, isso é fundamental para o que Dalton irá fazer com o haicai, alguns anos depois. Afinal, apesar das diferenças estéticas que separam os dois escritores curitibanos — o Cachorro Louco e o Vampiro —, é inegável que ambos trabalham com o cotidiano. Focalizando esse aspecto, Dalton Trevisan, em prosa, fez com que seus haicais transitassem por temas distintos – líricos, grotescos e até cômicos. Dessa forma, ele garantiu espaço para toda a sua mitologia: desde a “tipinha” de seis anos, passando pelo casal de idosos, pelos amantes suburbanos, pelo solteirão solitário, pelas brigas diárias de João e Maria, até chegar ao alvoroço de pardais entre as folhas da laranjeira. Para exemplificar essa variedade, vejamos um texto que se assemelha mais ao haicai original, já que o tema da natureza se mantém: “Araponga – ó sineiro Quasímodo de penas brancas que engoliu o sino” (Trevisan, 2008, p. 133). No entanto, o elogio ao pássaro vem acompanhado de escárnio, quando a araponga deixa de ser reverenciada por seu canto metálico — marcante e inconfundível —, e passa a ser comparada ao Quasímodo, personagem ligado à deformidade.
Evidentemente, hoje, em plena era digital, os haicais permanecem, porque representam a fragmentação e a rapidez que marcam nosso tempo. Além disso, nesse território de confluências e fronteiras invisíveis ou redesenhadas, o gênero poético que veio do Oriente, e que recentemente ganhou algumas redes sociais como aliadas, segue servindo a diferentes contextos. De acordo com os dados mais recentes, “no Brasil, coexistem e estão ativas as várias vertentes do haicai brasileiro: a tradicionalista, a de inspiração zen, a filiada a Guilherme de Almeida, a epigramática e a de matriz concretista” (Franchetti, 2008, p. 266).
Considerando a função das ilustrações nas histórias literárias, vale lembrar que a síntese é uma constante. Ao ilustrador cabe fazer uma síntese visual, usando imagens que se alternam com as palavras. Dessa forma, os desenhos de Poty Lazzarotto, feitos com nanquim sobre papel, privilegiam a combinação clássica de preto-e-branco para concretizar alguns trechos de contos ou haicais escritos por Dalton Trevisan. Trata-se de duas artes e duas mídias distintas. Porém, os estilos do autor e do ilustrador parecem coincidir. Em suas imagens, Poty também abre mão de alguns detalhes em favor da caricatura, além de abandonar tudo o que lhe parece supérfluo em prol do recorte e do simbólico. O resultado é potência gráfica, assim como ocorre nos textos de Dalton. Não pode ser simples coincidência...
Da traição da moça bem se vinga no jardim.
Corta o antigo pé de glicínia azul.
Arranca os botões e quebra os galhos da azaleia.
Malha com força a trepadeira de maracujá.
Verte gostosamente água no canteiro de açucena. (Trevisan, 1994, p. 30)

Analisando o miniconto e a ilustração (Fig. 1), percebe-se o reforço da visualidade em relação aos elementos verbais. “A imagem é, nesse caso, integrada ao texto. A relação texto-imagem se encontra aqui entre redundância e informatividade” (Santaella; Nöth, 2009, p. 54). A cena, que mostra um homem urinando nas flores, dispensa o entorno. Não há grama, nem terra, nem outras flores, nem céu. Essa “recusa da imitação”, segundo Jacques Aumont, caracteriza o estilo expressionista e, nesse caso, “a representação não é mais o que é representado”. Ela vai além e nos convida a “entender o que é representado” (Aumont, 2004, p. 294). A imagem se reduz ao mínimo essencial, mostrando uma figura grosseira, seminua e de punhos cerrados, a fim de representar o contentamento pela vingança com uma risada marota e um grande jato de urina. No texto literário, a dimensão do estrago é representada pela estrutura: frases curtas, em parágrafos distintos. Cada ação ganha ênfase, ao ser isolada em uma frase. Assim, a devastação do jardim ocorre de modo progressivo.
Atualmente, com base nos conceitos associados à Intermidialidade, é possível compreender os contos/haicais e suas respectivas ilustrações como uma combinação de mídias ou como um texto único — multimidiático. Isso ocorre quando, sob uma mesma moldura, são usadas “ao menos duas mídias convencionalmente distintas ou [...] duas formas midiáticas de articulação” (Rajewsky, 2005, p. 51). Primeiro vem o conto/haicai, depois surge a imagem e, nesse processo: “Cada uma dessas formas midiáticas de articulação está presente em sua própria materialidade e contribui, em sua própria maneira específica, para a constituição e significado do produto” (Rajewsky, 2005, p. 51).
Detendo-se agora sobre a ilustração criada por Poty, vale destacar o aspecto caricatural do personagem. No rosto, o sorriso se destaca, mas, apesar disso, os traços não são claros. Há apenas rabiscos, que unem a boca e o nariz. Essa imprecisão é necessária, já que a caricatura consolida a “semelhança na dessemelhança” (Gombrich; Kris, 1968, p. 190), distorcendo “a aparência [...] para o bem da verdade profunda, interior” (Gombrich; Kris, 1968, p. 198). Esse princípio, aliás, alinha-se perfeitamente ao padrão preto-e-banco, que Poty usava em suas ilustrações, independente de essas serem desenhos ou gravuras.
“Eu não me dou bem com a cor”, dizia. Pela problemática da cor é que ele opta pela gravura, e com a influência do expressionismo retoma a importância da intensidade dramática do claro e escuro: “Eu me interessava muito mais pela gravura, por causa do preto e branco.” (Bini, 2018)
De modo oposto, nos painéis feitos com azulejos, o artista usava a cor e essa variação era explicada por ele como necessária, já que os murais eram grandes e alcançavam a coletividade. O mesmo não acontecia com os desenhos, que jaziam nas páginas dos livros, até que um leitor interagisse com eles, trazendo-os à vida. As ilustrações eram feitas para uma apreensão lenta, individual e reflexiva. Portanto, nesse caso, a cor serviria apenas como distração.
2. Representações do real instantâneo
Apesar de, ao longo das décadas, as narrativas de Dalton Trevisan terem se tornado cada vez mais sintéticas, foram conservadas as características do estilo ácido e contundente do Vampiro. O escritor era um observador e um caminhante. Passeava quase todos os dias, incógnito, pela cidade de Curitiba, evitando jornalistas, fotógrafos e fãs, mas contemplando as cenas do cotidiano, ouvindo as conversas e os ruídos das ruas. Inclusive, em alguns de seus desenhos, Poty Lazzarotto alude ao vício voyeurista de Dalton, como demonstra esta capa (Fig. 2):

A imagem apenas sugere a presença de Dalton. O escritor não aparece, reiterando sua aversão à exposição e ao convívio social. Por essa razão, ele é representado metonimicamente, pela cadeira vazia, pela jaqueta pendurada, pelos óculos, papéis e pela máquina de escrever sobre a mesa. Há, ainda, quem acredite que até mesmo o morcego pousado na soleira da janela seja uma representação de Dalton, para fazer valer sua fama de Vampiro, criatura notívaga, esquiva e solitária. Ou seria apenas Nelsinho, inspirando outras histórias de seu criador? A janela aberta conecta o escritor à cidade de Curitiba — “província, cárcere, lar” (Trevisan, 1992, p. 9). A praça é seu quintal. Com a Catedral ao fundo, a praça é onde tudo acontece, dia após dia, diante dos olhos atentos de Dalton.
Essa experiência urbana lhe rendeu muitas histórias, que, antes de serem escritas, precisavam passar pelo crivo do autor e só depois recebiam o mais fino trato literário, já que Dalton era extremamente hábil na seleção e no enquadramento de tudo o que era mostrado em suas histórias. Isso só reforça a pertinência do uso ampliado do conceito de écfrase, entendido aqui como um dispositivo poético de conversão da percepção visual — ou seja, do real observado — em linguagem verbal condensada. Nesse caso, os haicais funcionam como uma representação verbal do cotidiano, uma tradução poética do visível, que tem como matriz a experiência concreta e sensorial do mundo.
Na farmácia, a mocinha com o bebê no colo, apagando a voz:
— Uma caixa de pílula e um batom bem vermelho. (Trevisan, 2008, p.45)
Apesar da brevidade extrema, esse haicai de Dalton Trevisan condensa uma complexa rede de significados em apenas uma linha de diálogo e uma breve descrição. A cena, flagrada em um ambiente cotidiano — uma farmácia —, revela, com sutileza e crueldade, o entrelaçamento de sexualidade, maternidade e desejo de afirmação. A representação da personagem sugere juventude, fragilidade e responsabilidade precoce. No entanto, seu pedido atravessa a zona da banalidade para alcançar uma tensão simbólica. Ao “apagar a voz”, a personagem parece tentar disfarçar sua intenção (por vergonha? repressão? julgamento social?). O que importa é a combinação entre o que é dito e o que é silenciado, uma marca típica da escrita de Dalton Trevisan.
Com seu estilo minimalista e cortante, o Vampiro tenta iluminar as zonas mais obscuras da experiência humana. Nesse sentido, o autor também segue o caminho expressionista, porque dá apenas alguns elementos-chave para que o leitor possa enxergar de modo ampliado, buscando o sentido “além da aparência”. O objetivo é levar o leitor a “(re)criar uma realidade” que ele conhece bem ou que ele sabe que existe, mas prefere manter distância (Aumont, 2004, p. 295).
Outra representação do cotidiano, mas que se detém sobre muitos instantes, de modo a formar uma sequência de infelicidades, é o conto “O senhor meu marido”, originalmente publicado no livro Guerra conjugal (1969). Nesse texto, Dalton Trevisan subverte expectativas ao apresentar um homem pacato e resignado como vítima das infidelidades da mulher. No refrão que abre e fecha a história, o narrador avisa: “João era bom, era manso e Maria era única, para ele não havia outra [...]” (Trevisan, 1992, p. 37); “João era manso e Maria era única: não havia outra para ele” (Trevisan, 1992, p. 40). Marcada por uma ironia nada sutil, a narrativa encena uma espécie de exílio emocional recorrente, pelo fato de João mudar de endereço toda vez que descobre uma nova traição de Maria. A família morou em diversos bairros de Curitiba: Juvevê, Boqueirão, Prado Velho, Capanema, Mercês, Água Verde, Bacacheri, Batel... “Agora feliz numa casinha de madeira no Cristo-Rei” (Trevisan, 1992, p. 40).
Porém, não se trata de amor, nem de tenacidade. O que move João também não é a indignação moral. É apenas a tentativa de manter intacto o verniz da respeitabilidade. Dessa forma, Dalton Trevisan revela uma estrutura familiar completamente falida — corroída por convenções sociais e por silêncios de cumplicidade. A ilustração de Poty Lazzarotto, feita para o conto (Fig. 3), dialoga com essa ideia, pois a figura do marido aparece deliberadamente de costas para o chamego da mulher com o amante.

Essa quase equivalência entre o conto e a ilustração pode ser associada aos efeitos da “complementaridade” ou “determinação recíproca”, técnica “especialmente observada no caso em que conteúdos de imagem e palavra utilizam os variados potenciais de expressão semióticos de ambas as mídias” (Santaella; Nöth, 1998, p. 55). Além disso, os olhos de João são totalmente brancos, como se estivesse cego. O contraste dele é claro em relação à displicência de Maria e à altivez provocativa do rival. Dessa forma, o traço de Poty não apenas traduz visualmente o desequilíbrio da relação, como também acentua a atmosfera farsesca que paira sobre a narrativa. Outro detalhe que não escapa ao ilustrador é que João era garçom. Por isso, ele é mostrado em seu local de trabalho, o que contrasta com a imagem do amante, uniformizado com farda e quepe. Sem dúvida, isso reforça o poder dele sobre João e a cena como um todo revela uma crueldade simbólica. Um pacto tácito se estabelece, na tentativa de preservar uma estabilidade familiar utópica, pois ela só existia na esperança de João. Aliás, não havia nem mesmo uma família. Maria dizia que as filhas não eram dele...
Com o tempo, o processo de ilustração dos textos de Dalton Trevisan foi se modificando. No início, os contos, que eram mais longos, passavam por uma seleção. Nem todos traziam ilustrações. Poty escolhia alguns, assim como também definia qual história lhe daria a imagem que teria mais status, porque se transformaria em algo especial, ilustrando a orelha do livro, a quarta capa ou até mesmo a própria capa. Em 1994, com o lançamento de Dinorá, esse processo se mantém, com perdas e ganhos. Há mais imagens, é verdade. No entanto, elas se repetem como se fossem uma espécie de marca registrada (que aparece ao fim de cada conto ou de cada sequência de haicais).
No mesmo ano, com a publicação de Ah, é?, a síntese ganha mais ênfase e os haicais predominam. Além disso, o livro inova nas ilustrações. A repetição percebida em Dinorá ainda aparece. Porém, há pequenas variações que impedem a simples cópia. Apesar de muitas imagens serem as mesmas, elas se apresentam em tamanho maior ou menor e, ainda, há os recortes, que elegem ora um objeto, ora uma cabeça, dividindo uma grande ilustração em três ou quatro frames — menores, que passam a ser usados de forma independente, mas que são oriundos do mesmo conjunto (Fig. 4 e Fig. 5).


Também em Ah, é?, já se percebe que as ilustrações tornam-se menos definidas e específicas (não em relação ao traço, mas ao conteúdo), podendo ser relacionadas ao conto/haicai mais próximo ou a outros, que se perderam entre as páginas, mas que adotam a mesma abordagem moral. Isso pode ser aplicado a esta ilustração (Fig. 6) e a estes quatro haicais:

Os dois corações batendo só de um lado, não há o que nos separe.
Se o teu bater pra lá e o meu pra cá, daí tudo está perdido. (Trevisan, 1994, p. 132)
— Não gosto de você, amor. Mas não fique triste: não gosto de ninguém. Nem da minha mãe eu gosto. (Trevisan, 1994, p. 128)
Na cama o João vem pra cima de mim. Uma transa lá entre ele e a minha perna, não estou nem aí. (Trevisan, 1994, p. 16)
O falo ereto — única ponte entre duas almas irmãs. (Trevisan, 1994, p. 10)
A imagem do casal na cama, virado de costas um para o outro, cada qual absorto em uma atividade trivial — ela cortando a unha do pé e ele lendo o jornal — opera como chave visual que atravessa, de modo silencioso, os quatro haicais. Note-se também o grande vácuo que existe entre o homem e a mulher. No que se refere aos textos literários, ainda que sejam bastante distintos nas temáticas, todos eles compartilham a ideia do distanciamento íntimo. No primeiro haicai, a sintonia amorosa é formulada como um pacto rítmico entre corações, mas que se revela frágil, ameaçado pela mínima dissonância. No segundo, o desamor é absoluto: não se trata de um rompimento pontual, mas de um esvaziamento sentimental generalizado, que anula inclusive o vínculo familiar. O terceiro haicai reforça essa desconexão, ao expor uma relação sexual desprovida de reciprocidade. Já, no último exemplo, o erotismo é reduzido a um recurso último de conexão (o falo ereto como ponte entre “almas irmãs”), consolidando uma postura cínica e meramente mecânica. Dessa forma, percebe-se que, tanto na ilustração quanto nos quatro haicais, prevalece a mesma dinâmica afetiva: convivência sem comunicação, proximidade sem encontro.
Posteriormente, no livro 234 (1997), ocorrem novas alterações: as ilustrações resumem-se a uma série com cerca de 15 desenhos e esse conjunto se repete a cada intervalo de páginas, às vezes variando os tamanhos ou embaralhando a ordem. Com essa distribuição, as imagens são genéricas (a exemplo do que já tinha sido feito em Ah, é?) e dialogam não com um texto específico, mas com a violência e a desesperança que atravessam a maioria das “ministórias” do livro.
3. Arquiteturas da brevidade
Em alguns contos e principalmente nos haicais, a economia linguística que Dalton Trevisan aperfeiçoou por décadas lhe rendeu uma “linguagem narrativa ‘verbal-visual’”, que “tira da palavra aquilo que ela não pode ou não quer dizer” (Bini, 2018). Trata-se de uma estética do inacabamento e da sugestão, em que o sentido emerge menos pelo dito do que pelo não dito. Como em todo texto, essas cenas mínimas exigem a participação ativa do leitor, que deve preencher as lacunas, interpretar os vazios e perceber, na justaposição, um campo expandido de significados. Aliando a síntese a uma crítica mordaz, Dalton Trevisan adaptou sua escrita a partir de uma arquitetura que produz grande impacto:
Nhô João, perdido de catarata negra nos dois olhos:
– Me consolo que, em vez de nhá Biela, vejo uma nuvem. (Trevisan, 1996, p. 42)
Nesse haicai, o efeito tragicômico resulta da paródia, afinal, depois de anos de casamento, em vez do apego, surge a aversão. Isso condiz com o perfil dos casais representados por Dalton: unidos pelo ódio, até que a morte os separe. O silêncio dado pelas vírgulas valoriza a montagem, na qual os elementos não se explicam, mas, ainda assim, são colocados lado a lado, ativando um campo de sugestão que extrapola a narrativa.
Em outros textos, Dalton propõe uma escrita que se aproxima dos haicais tradicionais, por meio dos cortes, do silêncio e da montagem. Nesse contexto, as vírgulas são usadas com sabedoria, simulando o efeito do kireji, recurso no qual as pausas não apenas separam, mas reconfiguram o sentido do que foi dito. Com isso, a justaposição desempenha papel primordial, como neste haicai, ilustrado por Poty (Fig. 7) e que combina a alegria de uma “camisa florida” com a nostalgia da morte que se avizinhava. A frase final não apenas altera o sentido do que já foi dito, como também suspende o que ainda poderia vir:
Aparou o bigodinho e escolheu a camisa florida.
– Ele se enfeitava para a morte e não sabia. (Trevisan, 1994, p. 49)

Percebe-se que, na versão de Poty, a alegria é representada por outros elementos, como o quase sorriso da caveira, e o traje formal, no qual se sobressai uma gravata de bolinhas. Dessa forma, a ilustração mantém o contraste, mas usando outros extremos.
Já, neste outro exemplo, o kireji se concretiza pelo uso das vírgulas. O resultado é um corte seco, que assinala o fim de uma era: “A espada veio sobre Curitiba, e Curitiba foi, não é mais” (Trevisan, 1992, p. 16). A construção do tempo verbal marca uma transição súbita que funciona como uma ruptura. Não há indicação do que aconteceu, nem tentativa de explicação. Esse trecho encerra o conto “Lamentações de Curitiba”, originalmente publicado em 1968, no livro Mistérios de Curitiba. Na coletânea de 1992, o texto conta com uma ilustração de Poty (Fig. 8):

Para entender o desenho, é preciso voltar a outras partes do texto, como esta, que descreve o dilúvio que vitimaria a capital paranaense, no Dia do Juízo Final: “No rio Belém serão tantos afogados que a cabeça de um encostará nos pés de outro [...]” (Trevisan, 1992, p. 14). Na ilustração, as hachuras estabelecem cinco níveis distintos, que variam as texturas e multiplicam o efeito do preto-e-branco, com destaque para a representação da chuva — forte e grossa. Entretanto, em conformidade com o estilo tragicômico e sarcástico que caracteriza os textos de Dalton, o desenho mostra pés, a torre da Catedral de Curitiba afundando e uma mão segurando um guarda-chuva.
Como se vê, os textos breves constituem territórios de intensidade metafórica, nos quais a linguagem, ainda que limitada, alcança uma potência de sugestão que transcende o literal. De acordo com Alberto Manguel, a metáfora é o artifício que permite à linguagem contornar sua própria falência comunicativa, iluminando uma experiência por meio de outra (Manguel, 2017). Nesse jogo de transbordamentos, os contos e os haicais funcionam como lampejos que, ao mesmo tempo em que exigem do leitor uma postura crítica e criativa, também solicitam do autor e do ilustrador uma construção articulada entre a exposição e o silêncio. Sendo assim, nessa tessitura tríplice — da escrita literária, da ilustração e da leitura propriamente dita — a metáfora deixa de ser ornamento e passa a instaurar sentidos que escapam à nomeação direta, mas que, justamente por isso, alargam a experiência do mundo.
A conclusão até aqui: flashes verbais e visuais do cotidiano
Seguindo o tom ensaístico que predomina neste trabalho, é possível compreender as obras de Dalton e Poty como se ambas fossem uma espécie de epifania, já que designam aquele momento de revelação súbita, iluminadora, geralmente a partir de algo banal, cotidiano, mas que, de repente, torna-se carregado de sentido. Nos contos e nos haicais, essa lógica está presente na captura de um microacontecimento, que pode se resumir a um único instante (como no haicai) ou a vários instantes (como no conto). Sempre existe um gesto ínfimo, uma percepção mínima — que, ao ser isolada e condensada na linguagem, ganha densidade poética, significado e reverberação. Dalton operava dessa maneira, em seus textos, feitos a partir de flagrantes da vida urbana.
Nos traços de Poty, ocorre algo análogo: seus desenhos não captam as histórias de modo descritivo e literal. Em vez disso, o artista tenta definir uma espécie de essência visual daquele(s) instante(s), com linhas mínimas, com o vazio e, até mesmo, com aquilo que ainda não foi dito pelo conto ou pelo haicai. Portanto, a imagem sempre revela uma carga de sentido que ultrapassa o literário.
Nesse cruzamento, os textos de Dalton Trevisan atuam como fotografias verbais do real instantâneo. Trata-se de uma percepção sensível, atenta ao detalhe e à fugacidade — especialmente da Curitiba dos becos e das praças, com seus tipos anônimos, curiosos e, muitas vezes, cruéis ou irônicos. Alongando a sequência, as ilustrações transformam as palavras em imagens. Dalton traduziu a realidade em contos e haicais que, por sua vez, foram traduzidos por Poty. Ao fim desse processo de representações, como em um calidoscópio, as perspectivas se multiplicam. A cada giro, surge uma nova toada. Na verdade, as interpretações nunca cessam, pois ainda há o leitor (ou leitores), que interage(m) com os textos verbal e visual, aceitando-os ou confrontando-os.
Nesse jogo entre imagem e palavra, impõe-se uma poética da observação, que exige olhar concentrado e percepção ativa. Trata-se de uma forma de ver que não se limita ao registro, porque ativa deslocamentos e condensações, como em qualquer (re)leitura. Tanto nos contos e haicais de Dalton quanto nos desenhos de Poty, essa prontidão sensível organiza novas formas e dá densidade aos sentidos. Em vez de uma representação direta, palavras e imagens caracterizam-se como composições filtradas por uma inteligência poética que seleciona, recorta e transforma. Assim, o olhar emerge não apenas como forma de recepção, mas como elo fundamental na construção de um sentido compartilhado entre o autor, o ilustrador e o leitor.
Referências
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BINI, Fernando. Do traço, o plano e o espaço. 2018. Disponível em: <https://www.bpp.pr.gov.br/Helena/Noticia/Do-traco-o-plano-e-o-espaco>. Acesso em: 8 jun. 2025.
FRANCHETTI, Paulo. O haicai no Brasil. Alea, v. 10, n. 2, p. 256-269, jul.-dez. 2008.
GOMBRICH, Ernest; KRIS, Ernest. Os princípios da caricatura. In: KRIS, Ernest. Psicanálise da arte. São Paulo: Brasiliense, 1968, p. 182-203.
MANGUEL, Alberto. O leitor como metáfora. O viajante, a torre e a traça. São Paulo: Edições SESC, 2017. Disponível em:
metafora>. Acesso em: 2 jun. 2025.
RAJEWSKY, Irina O. Intermediality, intertextuality and remediation: a literary perspective on intermediality. Intermédialtés/Intermedialities, Montreal, n. 6, p. 43-64, 2005.
SANTAELLA, Lucia; NÖTH, Winfried. Imagem. Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 2009.
TREVISAN, Dalton. Em busca de Curitiba perdida. Rio de Janeiro: Record, 1992.
TREVISAN, Dalton. Ah, é? Rio de Janeiro: Record, 1994.
TREVISAN, Dalton. Pão e sangue. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.
TREVISAN, Dalton. Pico na veia. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Texto inédito escrito por Verônica Daniel Kobs especialmente para ser publicado no dia 14 de junho de 2025, em comemoração ao centenário de Dalton Trevisan, eterno Vampiro de Curitiba.
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* Verônica Daniel Kobs: Professora e Coordenadora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora Visitante do Mestrado e do Doutorado da Florida University of Science and Theology. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.
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