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OSWALD DE ANDRADE E A AVANT-GARDE TUPINIQUIM

  • Foto do escritor: Verônica Daniel Kobs
    Verônica Daniel Kobs
  • 31 de mai.
  • 9 min de leitura

Antes de dar início às relações interartísticas que este estudo propõe, cabe resgatar o princípio básico da obra de Oswald de Andrade, que foi desenvolvendo aos poucos, até delinear com mais clareza o que o autor chamou de movimento antropofágico. A antropofagia utilizava "um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando a influência europeia por um mergulho no detalhe brasileiro” (Candido, 1965, p. 144-145). Por causa disso, Haroldo de Campos faz menção à “devoração crítica”, alertando para o fato de que “a atitude antropofágica proclamada no ‘Manifesto’ de 1928 [...] já está presente, embrionariamente, no ‘Manifesto da Poesia Pau-Brasil’” (Campos, 1974, p. 31).

Realçando a interculturalidade que norteou a produção do autor modernista, desde a década de 1920, o crítico e colega Paulo Prado sintetiza o surgimento da poética de Oswald de Andrade:

 

Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy — umbigo do mundo — descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia "pau-brasil”. (Prado, 1974, p. 67, grifo no original)

 

Na tentativa de refazer os passos do autor, na capital francesa, este ensaio propõe algumas aproximações, a fim de aventar hipóteses que permitam uma melhor compreensão do papel das vanguardas no pensamento e na poesia oswaldianos.

O Dadaísmo foi a vanguarda que mais questionou o status da arte, ao propor um olhar contemplativo em relação às coisas do dia a dia (Fig. 1), compreendidos como “objetos antiarte” (Ades, 2000, p. 99), os quais, por sua vez, motivaram a técnica que ficou conhecida como “ready-made recíproco” (Ades, 2000, p. 99). Nesse contexto, estabeleceram-se a “fotomontagem” e “colagem [...] feita de recortes de jornais” (Ades, 2000, p. 106).

 

Figura 1: Difficult, de Kurt Schwitters (1942-1943)

 

Coerente com os princípios do Dadá, Oswald de Andrade, no texto “agente”, usa a linguagem típica dos classificados de jornais para construir um poema:

 

agente

Quartos para famílias e cavalheiros

Prédio de 3 andares

Construído para esse fim

Todos de frente

Mobiliados em estilo moderno *

Modern Style

Água telefone elevadores

Grande terraço sistema yankee

Donde se descortina o belo panorama

De Guanabara (Andrade, 1974, p. 108)

 

Em outra referência clara ao Dadaísmo, a série de poemas reunidos na seção “Pero Vaz de Caminha” é construída com base na releitura e reescrita dos documentos do período colonial.

 

a descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longo

Até a oitava da Páscoa

Topamos aves

E houvemos vista de terra ((Andrade, 1974, p. 80)

 

Novamente, a literatura se apropria de textos informacionais como matéria-prima, ampliando seu domínio artístico. Além disso, é importante perceber que a retomada de textos teóricos ajuda a consolidar a releitura crítica da inteligência nacional.

A pintura cubista privilegiou a fragmentação, as formas geométricas e a síntese (Golding, 2000, p. 46-47). Os quadros propunham imagens entrecortadas ou sobrepostas, a fim de dar uma impressão de “empilhamento” e assim obter um efeito antinaturalista (Golding, 2000, p. 49). Tais princípios podem ser comprovados com esta tela (Fig. 2), que, embora represente uma cena comum e cotidiana, utiliza técnicas que se recusam a mostrar os objetos e os móveis com clareza:

 

Figura 2: Interior com paleta, de Georges Braque (1942)

 

Valendo-se do Cubismo, no poema a seguir o eu-lírico descreve a cidade de Tiradentes, que até 1889 era conhecida como Vila de São José Del Rey:

 

são josé del rei

Bananeiras

O Sol

O cansaço da ilusão

Igrejas

O ouro na serra de pedra

A decadência ((Andrade, 1974, p. 134)

 

Nesses versos, o poeta recusa os encadeamentos e escolhe montar o poema por meio de uma sucessão de frames ou recortes. Desse modo, privilegiam-se a fragmentação e a descontinuidade — características marcantes da vanguarda em análise.

Já o Futurismo celebrava a metrópole, a industrialização e o movimento (Fig. 3). Por causa disso, “Como nome para o movimento, Marinetti hesitara entre dinamismo, eletricidade e futurismo” (Lynton, 2000, p. 85). Sem dúvida, o Futurismo foi bastante militante na defesa de sua ideologia, opondo-se fortemente à tradição. “Marinetti queria que as artes demolissem o passado e celebrassem as delícias da velocidade e da energia mecânica” (Lynton, 2000, p. 85).

 

Figura 3: Arranha-céus e túneis, de Fortunato Depero (1930)

 

Em suma, esse movimento artístico requisitava “uma nova arte para um novo mundo” (Lynton, 2000, p. 87). Nesse panorama, o campo era substituído pela urbanização dos grandes centros, como demonstram estes versos de Oswald de Andrade:

               

a transação

O fazendeiro criara filhos Escravos escravas

Nos terreiros de pitangas e jabuticabas

Mas um dia trocou

O ouro da carne preta e musculosa

As gabirobas e os coqueiros

Os monjolos e os bois

Por terras imaginárias

Onde nasceria a lavoura verde do café (Andrade, 1974, p. 92)

 

Dando continuidade ao ideário futurista, neste outro poema, o eu-lírico exalta o bonde elétrico, meio de transporte que passou a fazer parte da rotina da capital paulista em 1900, por iniciativa da empresa Light:

 

bonde

O transatlântico mesclado

Dlendlena e esguicha luz

Postretutas e famias sacolejam (Andrade, 1974, p. 106)

 

Isso vai ao encontro do manifesto futurista, com destaque a este trecho: “Cantaremos a incandescência noturna e vibrante de arsenais e estaleiros, refulgindo em violentas luas elétricas, as vorazes estações devorando suas fumegantes serpentes... as locomotivas de peitorais robustos [...], e o voo suave dos aviões [...]” (Lynton, 2000, p. 86). Além de Oswald de Andrade ter homenageado a urbanidade, Tarsila do Amaral, nas ocasiões em que fez ilustrações para os poemas do marido, celebrou o progresso trazido pela eletricidade e pelos navios, que não apenas traziam imigrantes, mas também estabeleciam importantes vínculos comerciais entre o Brasil e outros países (Figs. 4 e 5). 

    


Figuras 4 e 5: Postes da Light e Lóide brasileiro, de Tarsila do Amaral

Fontes: Andrade, 1974, p. 119; Andrade, 1974, p. 143.

 

Com os avanços da indústria e da tecnologia, o Brasil estava em franca ascensão. O país estava em movimento, rumo ao progresso, defendendo uma ideologia que atingiu seu auge na década de 1950.

Assim como o Cubismo, o Expressionismo também defendia o antinaturalismo. No entanto, suas técnicas e características eram distintas. O Expressionismo utilizava o exagero (Fig. 6) por meio de “cores brilhantes e pinceladas intensas” (Lynton, 2000, p. 36), o que costumava conferir à obra “certo grau de distorção” (Lynton, 2000, p. 40).

 

Figura 6: Cinco mulheres na rua, de Ernst Ludwig Kirchner (1913)

 

Para ilustrar o aspecto expressionista na poesia de Oswald de Andrade, destacamos a seguir as três estrofes finais do poema “soidão”, nas quais predomina a repetição:

 

[...]

Chove chuva choverando

Que a casa de meu bem

Está-se toda se molhando

 

Anoitece sobre os jardins

Jardim da Luz

Jardim da Praça da República

Jardins das platibandas

 

Noite

Noite de hotel

Chove chuva choverando (Andrade, 1974, p. 171)

 

O uso da repetição como recurso estilístico aparece sob forma de anáforas, ecos, aliterações, assonâncias, rimas, paralelismos e trocadilhos com neologismos, como ocorre no primeiro e no último versos do excerto lido: “Chove chuva choverando”. A princípio, a repetição pode ser interpretada como facilitadora. No entanto, ela apresenta tantas nuances e variações que os versos se transformam numa sequência de exemplos técnicos, que complexificam a musicalidade e o sentido do texto.

A estética surrealista reagia principalmente à burguesia e, exatamente por isso, propunha a deselitização da arte. Para tentar cumprir essa meta, o Surrealismo dava lugar às “formas de associação até agora desprezadas” e ao “jogo desinteressado do pensamento” (Ades, 2000, p. 110). Na imagem a seguir, isso se concretiza pelo par de pernas dentro do gramofone (Fig. 7).

 

Figura 7: Jamais, de Óscar Domínguez (1937)

 

No Surrealismo, uma nova proposta de realidade surgia, com a potencialização de alguns elementos e com a conjugação de objetos considerados díspares ou antagônicos. Nesse sentido, forjava-se uma suprarrealidade, propondo alterações significativas nos modos de representação.

 

black-out

Girafas tripulantes

Em pára-quedas

A mão do jaburu

Roda a mulher que chora

O leão dá trezentos mil rugidos

Por minuto

O tigre não é mais fera

[...](Andrade, 1974, p. 190)

 

Nesse poema, a escuridão parece justificar as combinações e situações estranhas que o eu-lírico apresenta, fazendo uso, sobretudo, da prosopopeia. Como resultado das sucessivas personificações, os versos aumentam sua proximidade com a atmosfera surrealista, associada ao sonho e à imaginação, mas sempre paralela à realidade.

 

a família do burrinho

— Vamos Joseph fugir

— Para onde Maria ir

Joseph (jocoso) — shall go to Jundi-aí ai!

— Depressa! Sela o Mangarito

Vamos com o vento Sul

Onde serei cesariada?

— No presepe

— Tenho medo da vaca

— Não chores darling! (terno) Sweepstake de Deus!

Maria — Caí na ilegalidade

Porque modéstía à parte

Trago uma trindade no ventre

Nesse tempo não havia ainda as irmãs Dione (Andrade, 1974, p. 198)

 

O trecho transcrito acima é apenas a primeira estrofe de um poema longuíssimo, que se faz surrealista em sua estrutura, por misturar elementos da poesia, da prosa e do teatro. No texto, o eu-lírico parodia a história religiosa de José e Maria, subvertendo não apenas o mito, mas também a linguagem, ao inserir a língua inglesa como abertura para um coloquialismo que contribui para a dessacralização da família de Jesus.

Além disso, há referência a notícias que fizeram alarde, na época, como o caso das irmãs Dione, que repercutiu no mundo inteiro. Coerente com essa ideia, no poema José e Maria fogem para Jundiaí, cidade que, no folclore popular, foi fundada no século XIX, por um personagem também relacionado à perseguição dos poderosos e à fuga de sua família.

Com esse exemplo, o ciclo se fecha e voltamos à primeira vanguarda, a dadaísta, já que, por meio da paródia, Oswald de Andrade relê e reescreve umas das histórias mais famosas da mitologia cristã, associando-a ao folclore e aos textos de cunho jornalístico. Esse processo, então, vincula-se ao ready-made, pelo fato de o poema reaproveitar discursos e também pelo fato de o poeta relacionar elementos que questionam conceitos há muito estabelecidos.

Como pontuou o crítico Haroldo de Campos, ao estudar a obra do escritor modernista: “Oswald recorreu a uma sensibilidade primitiva [...] e a uma poética da concretude [...] para comensurar a literatura brasileira às novas necessidades de comunicação engendradas pela civilização técnica” (Campos, 1974, p. 50). Essa referência foi discutida anteriormente, quando foram analisados os versos de ênfase futurista, que registraram a transição do campo para a cidade e exaltaram as marcas do progresso.

Pelo fato de esse contexto também ter inspirado as vanguardas do início do século XX, a inovação poética precisava acompanhar a evolução que se fazia presente em outras partes da sociedade. Consequentemente, Oswald de Andrade, em seus manifestos, proclama uma nova fase: “Dividamos: poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação” (Andrade, 1924). Tanto no primeiro quanto no segundo manifesto, a menção às vanguardas europeias era clara, como evidenciam estes trechos:

 

E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e a fulgurações. (Andrade, 1924)

 

Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos. (Andrade, 1928)

 

Já tínhamos a língua surrealista. (Andrade, 1928)

 

Isso demonstra a consolidação do projeto estético do autor, que se resume à transição da Poesia Pau-Brasil para o Antropofagismo. Nesse percurso, de apenas quatro anos, Oswald de Andrade estabeleceu um posicionamento cultural que mudou os rumos da arte brasileira e que se mantém atual, justificando as confluências, os empréstimos e as inter-relações que caracterizam todo tipo de comunicação e expressão artística, “porque somos fortes e vingativos como o Jabuti” (Andrade, 1928).

 


REFERÊNCIAS

ADES, D. Dadá e surrealismo. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. pp. 97-120. 

ANDRADE, O. de. Manifesto da poesia pau-brasil. Correio da manhã, 18 março 1924. 

ANDRADE, O. de. Manifesto antropófago. Revista de antropofagia, São Paulo, ano I, n. I, [não paginado], mai. 1928.

ANDRADE, O. de. Obras completas VII. Poesias reunidas. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

CAMPOS, H. de. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, O. de. Obras completas VII. Poesias reunidas. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. pp. 9-64.

CANDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1965.

GOLDING, J. Cubismo. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. pp. 44-68.

LYNTON, N. Expressionismo. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. pp. 27-43.

LYNTON, N. Futurismo. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. pp. 85-92. 

PRADO, P. Poesia pau-brasil. In: ANDRADE, O. de. Obras completas VII. Poesias reunidas. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. pp. 67-72.

 


Trabalho apresentado no V Encontro Internacional promovido pela UNIANDRADE e pela Florida University of Science and Theology, em outubro de 2024. O evento homenageou o escritor modernista Oswald de Andrade.


Posteriormente, em 2025, o artigo foi também publicado no blog Recorte Lírico.

 


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* Verônica Daniel Kobs: Professora e Coordenadora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora Visitante do Mestrado e do Doutorado da Florida University of Science and Theology. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.

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