Resgatando a peça de Osman Lins, escrita no final da década de 1960, um dos assuntos do filme Lisbela e o prisioneiro (BRA, 2003), de Guel Arraes, é o próprio cinema. Na peça do autor pernambucano, já há referência ao cinema, mas de modo sutil. Jaborandi, o cinéfilo do texto, empresta essa sua característica a Lisbela, que, no longa, além de acompanhar os seriados, também ensina Douglas sobre como se comportar em uma sessão. Focalizando várias vezes a personagem no cinema, o filme também apresenta trechos dos episódios vistos por ela, os quais dialogam o tempo todo com a história vivida por Lisbela, Leleu e Douglas. Essa duplicidade narrativa estabelece uma associação entre realidade e ficção, comum nas obras metalinguísticas. O jogo de desconstrução da verossimilhança vira uma instigante brincadeira nas mãos dos roteiristas, já que o tom exagerado diminui as similaridades com o real, mas o fato de Leleu e Lisbela assistirem a sua própria história não. Diante disso, até mesmo o paradoxo característico da metalinguagem é explorado na adaptação fílmica.
O jogo metalinguístico impera, no filme, desde o começo. A primeira cena já mostra Lisbela e seu noivo no cinema e, ao mesmo tempo em que o filme a que eles foram assistir se inicia, também se inicia Lisbela e o prisioneiro. Enquanto elenco e personagens são apresentados, por meio dos letreiros, a voz de Lisbela vai explicando a função de cada um dentro da trama. Justamente nesse aspecto, a personagem feminina do filme corresponde ao perfil cinéfilo de Jaborandi, na peça de Lins, como demonstram estes trechos, em que ele ensina aos companheiros da delegacia as características do seriado: “— [...] Aquele pulo é um episódio. Entende? Episódio. Na última hora, acontece uma coisa. Aí é que está o ruim: a gente passar uma semana sofrendo, bolando que coisa foi essa” (LINS, 1964, p. 10); “— [...] na última série, queira ou não queira os bandidos vão em cana” (LINS, 1964, p. 11).
No final do filme, há nova referência à metalinguagem, quando Lisbela lembra a Leleu que todo filme de amor termina com beijo na boca, ao que ele responde:
— Com todo mundo olhando?
— É só no começo. Depois, o filme acaba.
— Então tá bom de a gente se apressar, porque o povo já entendeu que tá acabando e é capaz de começar a sair sem prestar mais atenção na gente.
— É (olhando para a frente), mas talvez nessa sala tenha pelo menos um casal apaixonado que vai assistir até o finalzinho. E mesmo depois de o filme acabar, eles vão ficar parados, um tempão, até o cinema esvaziar todinho. E aí, vão se mexendo devagar, como se estivessem acordando, depois de sonhar com a história da gente.
— Tomara que eles tenham gostado. (Beijam-se. A palavra “Fim” aparece ao canto da tela) (LISBELA, 2003).
Figura 1: Cenas finais do filme, em que o casal se dirige ao público.
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Quando sobem os créditos, na tela, o enquadramento se abre e aparece uma sala de cinema, onde todos começam a se levantar e a sair, até que reste apenas um casal, Leleu e Lisbela, que eram, ao mesmo tempo, personagens e espectadores de sua história. Explorando a visualidade do cinema, os roteiristas transportam os protagonistas do filme para um espaço que duplica a realidade do espectador, em um instigante jogo, que confronta realidade e ficção.
Além disso, a cena propicia certa identificação do público com o par romântico do filme, utilizando como recurso extra a música que encerra a adaptação, “O amor é filme”, de Lirinha, que se encerra com a pergunta: “A gente podia ser como o pessoal do filme, não é?” (LISBELA, 2003). Esse trecho ilustra o sonho de Lisbela, que é também o de grande parte do público menos especializado. A ilusão da mocinha do filme parece se concretizar, ao menos por um rápido instante. Na hora em que Leleu se declara a Lisbela, os dois se beijam e são observados pelo casal da tela. É como se a ordem das coisas se invertesse e a realidade vivida por eles assumisse ares de ficção, pela magia do momento.
Figura 2: O casal, pouco antes do beijo, com o casal do seriado ao fundo, em sincronia.
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A intertextualidade que envolve a história de Lisbela e a dos seriados reforça a história protagonizada pelas personagens e movimenta a narrativa, contribuindo decisivamente para a adaptação fílmica. Em Lisbela e o prisioneiro, o processo de inserção de trechos de vários filmes dentro do filme maior serve como uma
[...] espécie de homenagem às aventuras em série que ajudavam no processo de formação de plateia nos anos 1930, 1940 e 1950. Para atenuar a obviedade de uma vida sem grandes emoções, pelo menos sem emoções com a pompa hollywoodiana, Lisbela [...] se entrega ao prazer voyeurístico de devorar filme após filme toda noite (FONSECA, 2005).
As sequências protagonizadas por Leleu encontram correspondentes naquelas protagonizadas por Carlos Casagrande, nos seriados (Fig. 2). Esse processo é o ponto alto da paródia, pois acentua e reivindica a diferença entre o cinema nacional e o padrão hollywoodiano. Nas comparações demonstradas abaixo, a brasilidade é estabelecida pela diferença, tal como já mencionado, no início deste artigo. Há passagens em que as cenas se alternam constantemente, mostrando que as histórias são as mesmas, mas com uma diferença crucial na produção:
FILME – Leleu tenta fugir da casa de Inaura pulando a janela, mas bate fortemente contra ela, sendo obrigado a tentar novamente.
SERIADO – O mocinho foge do vilão, atirando-se contra uma janela de vidro, que se quebra logo na primeira tentativa.
FILME – Leleu cai em um galinheiro.
SERIADO – O galã cai sobre as caixas do que parece ser um depósito.
FILME – Leleu é perseguido por Frederico Evandro, vestido com um terno roxo e com várias correntes de ouro no pescoço.
SERIADO – O personagem é perseguido por um vilão tipicamente nazista.
FILME – Leleu faz sua caminhonete, uma Veraneio toda colorida, pegar no tranco.
SERIADO – O mocinho dá a partida e o carro, que lembra um Jeep, pega já na primeira tentativa (LISBELA, 2003.)
Para Lisbela, o cinema mostra um mundo desconhecido, vasto e completamente diferente da rotina de Vitória de Santo Antão. Entre os seriados que a mocinha do filme acompanha, estão os clássicos O médico e o monstro, de Stevenson, e Frankenstein, de Mary Shelley. Seguindo à risca a divisão da história em episódios, no final de cada capítulo aparece um letreiro com a inscrição: “Continua...” (LISBELA, 2003). Lançando mão desse mesmo recurso, fora da sala de cinema frequentada pela protagonista, os roteiristas interrompem a ação, em momentos decisivos, para instaurar o mesmo suspense que alimenta a curiosidade do público dos seriados: “Será que o nosso herói aguenta o tranco da besta fera das Alagoas? Ou ele agora se estupora e termina batendo a caçoleta? Não perca no próximo episódio: ‘As aventuras de um cristão contra o secretário do diabo’” (LISBELA, 2003). Indo além, isso ainda estabelece, na narrativa, a paródia e o tom popular, porque associa os ganchos, que levavam o público a seguir as histórias, em capítulos, ao sotaque nordestino, o qual, por sua vez, está a serviço do regionalismo e da comédia, simultaneamente.
Extremamente bem aproveitada, a alternância entre a história de Leleu e Lisbela e os enredos dos seriados serve, ainda, para introduzir o recurso do flashforward, que se deve ao fato de Lisbela ser viciada em cinema e de, por isso, conhecer muito bem cada tipo de filme, sobretudo os de amor, seus preferidos. Logo no começo da adaptação, ela, ao sair do cinema, diz ao noivo ter certeza de que, no próximo episódio, acontecerá o encontro do mocinho com a mocinha, pois eles já tinham sido apresentados separadamente e agora já era hora de aparecerem juntos. Essa afirmação e o ponto em que se encerrou o último episódio do seriado que ela seguia coincidem com o filme Lisbela e o prisioneiro. Lisbela e Leleu já tinham sido também apresentados sozinhos e, de fato, na sequência, o espectador passa a acompanhar o primeiro encontro do par romântico e os desencontros que se sucedem, até o final feliz. O recurso do flashforward se repete mais adiante, pontuando, de tempos em tempos, a metalinguagem e a intertextualidade, quando o casal do seriado vive uma felicidade ímpar, o que Lisbela observa, fazendo o seguinte comentário a Douglas: “Quando tá tudo bom demais desse jeito e ainda falta metade da sessão é sinal de que vai piorar de vez” (LISBELA, 2003). E, no filme dirigido por Guel Arraes, acaba acontecendo isso mesmo: Frederico e Leleu se encontram e Inaura reaparece, para atrapalhar a vida dos protagonistas.
Dando ênfase à metalinguagem, a partir da retomada da peça Lisbela e o prisioneiro, de Osman Lins, o filme homônimo, dirigido por Guel Arraes, apresenta algumas características da sociedade contemporânea, as quais servem para justificar o valor do texto literário, apesar de sua primeira edição ter ocorrido quase meio século antes do lançamento do filme. Nessa lista essencial, cabem as seguintes associações:
a) O regionalismo surge como oposição à uniformidade gerada pela globalização, já que, de acordo com Stuart Hall, “[...] sem um sentimento de identificação nacional o sujeito moderno experimentaria um profundo sentimento de perda subjetiva” (HALL, 2001, p. 13). Renato Ortiz compartilha essa ideia, afirmando que a “[...] ênfase na autenticidade revela a necessidade visceral de se construir uma identidade que se contraponha ao pólo de dominação” (ORTIZ, 1994, p. 56).
b) A diversidade de situações vividas pelas personagens promove a multiplicidade, apesar de a peça se concentrar mais no espaço da cadeia da cidade de Vitória de Santo Antão. Nesse aspecto, são fundamentais as palavras de Italo Calvino sobre a importância dessa pluralidade, que, na concepção dele, ajuda a estabelecer a identificação da arte com a vida:
Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve [...]. Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis (CALVINO, 1998, p. 138, grifo no original).
c) O perfil desafiador de Lisbela, quando aplicado à sociedade atual, corresponde ao conceito de empoderamento feminino, afinal, a personagem se sobrepõe às vontades do noivo e do pai, para finalmente conquistar o poder necessário de assumir sua vida, escolher Leleu e assim garantir o direito de traçar seu próprio destino: “Pessoas são empoderadas, ou desempoderadas, em relação aos outros ou, principalmente, em relação a elas mesmas, no passado” (MOSEDALE, 2016, Tradução nossa).
d) A associação do teatro com outras artes, principalmente o circo e o cinema, é uma característica que, no século XXI, serve de base à relação interartes, em consonância com o hibridismo e com a multiplicidade. Segundo Irina Rajewsky, esse diálogo oferece “[...] novas, ou pelo menos diferentes, visões sobre o cruzamento das fronteiras entre as mídias e a hibridização” (RAJEWSKY, 2005, p. 45).
Dessa forma, a colaboração entre as artes concretiza os movimentos simultâneos da retomada e da atualização, permitindo novos diálogos, o aguçamento da crítica e a valorização do presente, sem esquecer o passado e as tradições.
REFERÊNCIAS
CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
FONSECA, R. “Lisbela e o Prisioneiro” Repete Fórmulas de Sucesso e Figurinos de Almodóvar. Revista de Cinema, São Paulo, edição 41, setembro 2003. Disponível em:
<http://revistadecinema.uol.com.br/2011/07/edicao-41-setembro-de-2003/>. Acesso em: 23 jul. 2005.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2001.
LINS, Osman. Lisbela e o Prisioneiro. Rio de Janeiro: Letras e Artes, 1964.
LISBELA e o Prisioneiro. Direção de Guel Arraes. Brasil: Paula Lavigne; Fox Film do Brasil, 2003. 1 DVD (110 min); son.
MOSEDALE, S. Policy Arena. Assessing Women’s Empowerment: Towards a Conceptual Framework. Wiley: Journal of International Development, Nova Jersey, abril 2014. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/261727075_Mosedale_Assessing_women's_empowerment>. Acesso em: 10 out. 2016.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.
RAJEWSKY, Irina. Intermediality, Intertextuality and Remediation: A Literary Perspective on Intermediality. Intermédialtés/Intermedialities. Montreal, n. 6, p. 43-64, 2005.
Texto originalmente publicado no blog Recorte Lírico, em 2018.
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* Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.
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Obrigada, Nicole. Seu comentário também se destaca pela crítica e pela excelente fundamentação!
Professora Verônica, a sua análise profunda e perspicaz sobre a interseção entre o cinema e o teatro, utilizando a obra de Osman Lins e sua adaptação cinematográfica por Guel Arraes como ponto central.
A habilidade do autor em traçar paralelos entre a peça original e o filme evidencia uma compreensão sólida das nuances artísticas envolvidas. A análise da cena final, onde o casal protagonista se torna parte do público na sala de cinema, é particularmente intrigante. Essa quebra de barreiras entre ficção e realidade é habilmente destacada, ressaltando a metalinguagem como uma ferramenta eficaz na adaptação cinematográfica.
A discussão sobre a intertextualidade e o uso de flashforward também enriquecem a compreensão da narrativa, oferecendo uma visão detalhada das técnicas empregadas…