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Pai contra mãe, de Machado de Assis, um dos muitos contos que compõem Relíquias de casa velha, chama atenção pela temática contundente da escravização, e também pela mistura de estilos. Uma particularidade desse texto de ficção é o seu início, que privilegia uma linguagem excessivamente descritiva como instrumento de horror e crueldade, para apresentar, com riqueza de detalhes, a escravização e “seus instrumentos” (Assis, 1970, p. 67). Esse artifício foi usado também na pintura, como demonstrado neste quadro, em que Debret apresenta a gargalheira, colares de ferro ou de madeira usados nos negros fugitivos (Fig. 1):
Figura 1: Tela Castigo imposto aos negros (RJ, 1816-1831), de J. B. Debret. Imagem disponível em: https://ensinarhistoria.com.br/vida-urbana-no-brasil-segundo-debret/
Outra função desempenhada pela descrição, a de tornar conhecidos objetos e fatos passados, pode ser relacionada à proposta do texto machadiano: fazer um balanço crítico de um capítulo recente da História. Na época em que o texto foi escrito, a realidade era outra, a escravização tinha sido proibida recentemente, o que não significava, no entanto, que tinha deixado de existir. Portanto, como é típico do narrador machadiano, o leitor entra em contato com essa realidade que lhe pertence apenas por fragmentos da memória, ou, em se tratando do leitor de hoje, pelo que ele acabou sabendo por meio da História.
Abre-se, então, no conto, uma alternância entre o fato histórico e a história ficcional de Cândido e Arminda. O Rio de Janeiro do fim do século XIX não era apenas o cenário da Corte, onde imperava a burguesia, a moda e os costumes importados da França. Segundo Luiz Felipe de Alencastro, o Rio de Janeiro, na época, apresentava “a mais forte concentração urbana de escravos do Novo Mundo” (Alencastro, 2008). Cândido Neves tinha muitos ofícios. Um deles era a captura de escravizados fugidos e é nessa função que ele vê uma possibilidade de resolver sua falta de dinheiro, mesmo que, para isso, tivesse que sacrificar Arminda. Quando Cândido decide lutar pela vida do filho, ao tentar capturar a escravizada fugida, o personagem e o leitor descobrem que ela está grávida, o que a fará também lutar pelo filho, igualando-se, em propósitos, ao seu oponente. Se Cândido deseja ter dinheiro, para poder ficar com a criança, Arminda deseja que seu filho nasça em liberdade. Quando é capturada, a escravizada tenta oferecer seus préstimos a Cândido, mas isso de nada lhe serviria. Ela só lhe seria útil como mercadoria, depois de entregue ao dono e trocada por dinheiro.
O conflito entre os personagens é verossímil. Mais que isso: é humano. Tanto na realidade como no texto, a lei da selva é a que regula as relações. Quando há um impasse, como o que é apresentado no conto, o outro só conta, se representar alguma vantagem. Na disputa que se trava entre Cândido e Arminda, não há espaço para a concepção-clichê de que não há justificativas para o aborto sofrido por Arminda. O desfecho da história vai revelar, sem dúvida alguma, o pior lado do ser humano, mas é o instinto de sobrevivência ou de preservação que impulsiona o personagem machadiano. O mais forte vence o mais fraco e os indícios de quem será o vencedor aparecem desde o começo do conto. O tema da escravização e o fato de Arminda ser uma negra fugida são pistas de peso. Levando-se em conta os gêneros, também pode-se chegar à dominação do masculino sobre o feminino. Falta, ainda, o aspecto social, relacionado, obviamente, às questões de gênero e raça e ao aspecto político-econômico. Na época da instituição escravocrata, a hierarquia previa a seguinte ordem: 1) burgueses e latifundiários; 2) homens livres, categoria da qual Cândido fazia parte; e 3) escravizados, categoria de Arminda.
Em Quanto vale ou é por quilo, o diretor Sérgio Bianchi também explora o conflito de classes e a relação de dominação motivada por ele, em diferentes situações. A ligação com o conto Pai contra mãe é feita logo no início, com uma alusão aos privilégios da filantropia (Fig. 2): “Mais valem pobres na mão do que pobres roubando” (Quanto, 2005).
Figura 2: Cena do filme em que a personagem rica registra a doação de brinquedos às crianças de uma comunidade carente. Imagem disponível em: https://labdicasjornalismo.com/noticia/9893/resenha-critica--quanto-vale-ou-e-por-quilo
A frase retoma a relação existente entre Cândido e Arminda, afinal, no conto, fez-se um “bem social”, mesmo Cândido sendo o principal beneficiado. Como no texto machadiano, no filme, a elite usa os moradores das comunidades para se promover, enquanto tenta passar a imagem de exemplo de cidadania e solidariedade. Não há diferenças, portanto, entre o que Arminda representou para Cândido e o que os menos favorecidos representam para a elite.
Remetendo o espectador a 13 de outubro de 1799, na capital do vice-reinado, Sérgio Bianchi empresta o contexto da escravização para demonstrar que as coisas pouco mudaram e que, apesar da abolição, a escravização continua existindo, mas de uma forma diferente, maquiada. A escravização, tanto faz se de negros ou de brancos, é apresentada como algo inerente ao conflito de classes e, por consequência, a toda a sociedade. Assim como, no conto machadiano, a descrição serve para ligar o leitor com a História recente, os documentos apresentados como “fotos do arquivo nacional” (Quanto, 2005), no filme, ligam o espectador ao passado remoto. Quanto à utilização desse recurso, porém, duas coisas devem ser observadas. A primeira é a combinação que o diretor faz entre cinema e fotografia, já que ambos primam pela visualidade. A foto, como a descrição tem a função de detalhar e, desse modo, potencializar o efeito do que é apresentado, sendo, portanto, tão apelativa ao leitor quanto a descrição e a postura do narrador que caracterizam o conto machadiano. A segunda observação diz respeito ao anacronismo proposital de Bianchi de inserir a fotografia como modo de documentar os expedientes de uma época que ainda não contava com esse recurso. Mas era preciso envolver o espectador de algum modo. Por isso o diretor criou um modo de provar as observações feitas pelo narrador, método tão eficaz quanto o tom testemunhal assumido pelo narrador do texto literário. Ligando-se, então, passado e presente, investe-se em uma espécie de atavismo. É como se a sociedade atual tivesse recebido, da sociedade da época da escravatura, uma herança social, o que faz com que os costumes de outrora sejam retomados e apenas adaptados à nova realidade, perpetuando ideologias e relações sociais.
Emprestando a ousadia de Machado, Bianchi também usa um narrador que faz questão de incomodar o leitor com sua acidez e criticidade. Alternando a opinião do narrador com as fotos apresentadas, Sérgio Bianchi reconstitui o discurso oficial que as imagens representam, para desconstruí-lo, logo em seguida. Mas o que é extremamente relevante é a escolha de Milton Gonçalves, um ator negro, para fazer a narração, afinal, se o narrador tem status na obra de Machado, em Quanto vale ou é por quilo não podia ser diferente. Sendo assim, no filme, é um negro que passa a limpo e desmistifica toda a História da escravização, passando o recado de que as coisas não são como a maioria pensa e que a escravização impregnou todo o sistema, razão pela qual é praticamente impossível extirpá-la da sociedade. Mais que isso, a hierarquia que há entre as classes sociais obriga a permanência da escravização.
A ironia e a ousadia, no uso de Milton Gonçalves como narrador, aparecem em episódios como o de Maria Antônia e a escravizada Lucrécia, história de “lucro e liberdade” (Quanto, 2005), segundo o narrador (Fig. 3).
Figura 3: cena do filme em que Maria Antônia e a escravizada Lucrécia celebram o acordo que tinham acabado de oficializar. Imagem disponível em: https://otemponocinema.com/2020/01/07/quanto-vale-o-e-por-quilo/
A interferência do narrador, nesse e em outros episódios, mostra que a linguagem, inclusive pela entonação, estabelece a ironia, que se faz presente também pela disparidade entre o status do narrador, negro, pois ele goza de grande poder, já que serve de mediador entre os fatos e o espectador, e os personagens negros do filme. Arminda é negra, sem poder aquisitivo e tenta jogar com as armas que pode contra a elite branca. O personagem de Lázaro Ramos é um presidiário. E, finalmente, Candinho, é negro e coletor de resíduos. É como se a herança racial, genética, também determinasse uma herança social, definindo, pela cor, o patamar que a pessoa irá ocupar na sociedade. O inusitado é que apenas o narrador foge à regra, fato que pode ser encarado como uma provocação ao sistema, um recado contra o preconceito.
As relações entre raça e papel social são transportadas do conto machadiano para o filme, a fim de mostrar a inércia do sistema, por meio da comparação de dois contextos aparentemente distintos, separados por mais de um século. Cândido, no filme, passa de capitão do mato a coletor de resíduos e assassino. Mesmo em outra realidade, Bianchi faz o personagem carregar o peso de seu passado, investindo em uma espécie de tradição que o obriga a repetir suas ações. Da mesma forma, Arminda sofre, no presente, a mesma opressão que conheceu em seu passado de escravizada fugida. Em outras palavras, é como se os duplos de Arminda e Cândido, no passado, já antecipassem o final do filme (pelo menos um deles).
No primeiro final, Ricardo, personagem de Caco Ciocler, que representa o branco, dominador e, digamos, o dono de escravizados, contrata Cândido, o capitão do mato, para dar fim à Arminda, já que ela está ameaçando denunciar as atividades ilícitas dele e do sócio, Marco Aurélio, personagem de Herson Capri. Cândido, então, mata Arminda, vai para a casa e conta a boa nova à família: estava empregado. Final feliz para ele, assim como foi para o personagem de Machado. Mas esse final, que guarda maior similaridade com o conto machadiano, diz muito mais que isso. Cândido é vítima da necessidade. A desigualdade social e a submissão de uma classe a outra (sobretudo no que se refere ao princípio de oferta e procura) desencadeiam o final, tanto no filme quanto no texto literário, porque não dão outra saída ao personagem.
No segundo final, a proposta que Arminda faz a Cândido, de, juntos, montarem uma central de sequestros, permite esmiuçar ainda mais a escassez de saídas das classes menos favorecidas, voltando à ideia de que a abolição da escravatura não se realizou completamente, o que justifica o atavismo que perpassa o filme de Bianchi, explícito nas relações entre a instituição escravocrata e os conflitos sociais contemporâneos. Perpetuando a ideologia do opressor, Arminda e Cândido são escravizados pelo sistema, que os obriga a agir do mesmo modo que os dominantes, para não serem exterminados por eles. A partir disso, fica fácil entender a concepção de diversos historiadores que, ao analisarem a sociedade sob o ponto de vista das relações sociais, afirmam que a abolição é um não fato.
Além da oferta e da procura, relação que permeia livro e filme, surge, em Quanto vale ou é por quilo, mais um modo de retratar a diferença de classes, a ideologia do favor. O episódio entre Maria Antônia e Lucrécia, anteriormente citado, é um exemplo, mas as relações de favor se multiplicam, com o intuito de demonstrar que essas são extremamente corriqueiras e que também se perpetuaram na sociedade, tal como a escravização. Uma demonstração disso, no filme, é a ajuda prestada por D. Noêmia à tia Mônica, nos custos com a festa de casamento da sobrinha, Clara. Mônica, mesmo pertencendo a uma classe inferior à de Noêmia, tem uma funcionária negra, e, no momento em que Noêmia cobra-lhe o favor prestado, é justamente a negra que é oferecida em pagamento. A situação é exemplar, porque, além da relação de favor, ilustra o uso do negro como objeto. Sem consultar a funcionária, Mônica faz acordo com Noêmia, empenhando sua palavra. Não importa se, para cumpri-la, faça uso de outra pessoa, já que essa está a seu serviço e, se recebe um salário, é como se lhe pertencesse.
Fora ser uma manifestação de poder, o favor reflete o caráter individualista do ser humano. Porém, para se chegar a isso, é preciso querer enxergar além das aparências, pois a principal função do favor não é o lucro, mas ocultar o lucro como real e única intenção. É consensual que o favor é motivado pelas diferenças ou pelo abismo social entre as classes, apesar de dar a impressão de que, mediando as relações antagônicas, alcança-se uma igualdade. Essa ocultação que o favor propicia assemelha-se à hipocrisia, um dos principais temas da prosa Realista. Evidentemente, favor e filantropia estão entrelaçados, por suas intenções louváveis, e porque, de acordo com Roberto Schwarz, “o favorecido conscientemente engrandece a si e ao seu benfeitor” (Schwarz, 2018). Essa estrutura complexa do favor e da filantropia, que encerram, em suas concepções, a essência e a aparência, antagonicamente, favorece a ironia e a criticidade que caracterizam as obras de Machado e Bianchi.
Em Quanto vale ou é por quilo, o contraste e o uso que a elite faz da população carente ficam ainda mais explícitos quando aparecem, na tela, meninos e meninas, com números, em molduras. Logo depois, um som de moedas caindo. Os mais vulneráveis são um negócio extremamente lucrativo para o rico. Visando apenas à notabilidade e ao lucro, a elite cria projetos que atendem apenas às suas necessidades, sem maiores preocupações com a carência das camadas mais necessitadas. Veja-se, no filme, o exemplo do Projeto Alegria. Discutindo abertamente a filantropia, Bianchi, mais uma vez, afina sua obra com a de Machado, que usou várias crônicas para tratar do assunto, sobretudo nas décadas de 1870 e 1880.
Por meio da adaptação fílmica do conto Pai contra mãe, Bianchi empresta a narrativa machadiana, para comprovar sua universalidade. O tempo passa, mas os problemas persistem. Como se sofressem de uma doença crônica e incurável, as classes menos favorecidas continuam servindo à elite, seja passiva ou ativamente. Na filantropia, as classes menos favorecidas precisam apenas receber os favores, os presentes ou as doações para beneficiar os mais ricos. Diferentemente disso, o primeiro final de Quanto vale ou é por quilo exemplifica uma subserviência ativa, afinal, as práticas fora da lei nunca são feitas pelos chefes. Eles simplesmente mandam que outra pessoa faça. Os ricos continuam sendo os maiores beneficiados, pois ficam livres do que consideram um incômodo, ou recuperam os escravizados, evitando maiores prejuízos, mas são os menos abastados que garantem essa vitória a eles, perpetuando a associação entre as relações raciais e de poder, explicitada neste fragmento, de Muniz Sodré: “A cor branca extrai a sua hegemonia do fato de deixar presente na realidade inteira do indivíduo — seja ele rico ou pobre — a possibilidade de exercício de uma dominação, já que as identidades constroem-se no interior de relações de poder assimétricas” (Sodré, 1999, p. 263).
REFERÊNCIAS
ALENCASTRO, L. F. de. Pai contra mãe: o terror escravagista em um conto de Machado de Assis. Disponível em: http://www.freud-lacan.com/articles/article.php?url_
article=lpdealencastro141105. Acesso em: 13 jun. 2008.
ASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: _____. Relíquias de casa velha. São Paulo: W. M. Jackson Inc., 1970, p. 67-89.
QUANTO vale ou é por quilo. Direção de Sérgio Bianchi. Brasil: Patrick Leblanc e Luís Alberto Pereira; Riofilme, 2005. 1 DVD (104 min); son.
SCHWARZ, R. As ideias fora do lugar. Disponível em: <https://www.ebah.com.br/content/ABAAAfelwAF/as-ideias-fora-lugar-roberto-s>. Acesso em: 11 dez. 2018.
SODRÉ, M. Claros e escuros. Identidade, povo e mídia no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
Versão atualizada do texto publicado no blog Recorte Lírico, em 2018.
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* Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Autora e fundadora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes) e do blog Sarau Literário (http://teorialiterariauniandrade.blogspot.com/). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.
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