(Este texto contém spoilers.)
O livro O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo, escrito e ilustrado por Charlie Mackesy e publicado em 2019, é presença constante na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times, desde que foi lançado. Sem dúvida, esse sucesso incentivou o projeto de adaptação cinematográfica, o qual resultou no filme homônimo, lançado em 2022 e que, em 2023, ganhou o Oscar na categoria Melhor Curta-Metragem de Animação (Fig. 1).
Figura 1: Cena do filme O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo. Imagem disponível em: https://www.planocritico.com/critica-o-menino-a-toupeira-a-raposa-e-o-cavalo/
Pelo fato de o autor do livro também participar da direção do curta, a estética é mantida − no que diz respeito aos personagens, à linguagem e à sutileza da história. Quanto ao aspecto visual, isso se percebe facilmente, por meio da comparação da cena acima (Fig. 1) com a capa do livro (Fig. 2):
Figura 2: Capa do livro O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo (MACKESY, 2019, n. p.).
A única mudança diz respeito à paleta de cores, já que o filme utiliza maior cromatismo que o livro. No entanto, sabe-se que essa é uma necessidade da linguagem audiovisual, principalmente considerando o fato de que a história se passa na neve. Mesmo assim, a equipe de produção do curta economizou nos tons, recusando as cores chamativas, a fim de respeitar a coerência que existe no livro, de modo a combinar perfeitamente cores e traços delicados com linguagem e temática igualmente sutis (Figs. 3 e 4):
Figura 3: Duas páginas do livro O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo (MACKESY, 2019, n. p.).
Figura 4: Cena em que o Menino conversa com a Toupeira: no livro (à esq.) (MACKESY, 2019, n. p.); e no filme (à dir.) Imagem do filme disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2023/02/18/interna_cultura,1459066/plataformas-exibem-perolas-escondidas-do-oscar-2023.shtml
Dada a proximidade entre as duas mídias, pode-se afirmar que a história de O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo, tanto no livro quanto no filme, apresenta muitas características que remetem ao clássico de Antoine de Saint-Exupéry, O pequeno príncipe, lançado em 1943. O primeiro ponto em comum é a referência que ambos os autores fazem ao público adulto, em uma espécie de dedicatória. Em O pequeno príncipe, Saint-Exupéry pede “perdão às crianças por dedicar este livro a uma pessoa grande”, enfatizando que “Todas as pessoas grandes foram um dia crianças (mas poucas se lembram disso)” (SAINT-EXUPÉRY, 2018, p. 3). Em O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo, o escritor também deixa claro que a história não foi feita apenas para as crianças: “Este livro é para toda a gente, quer se tenha oito ou oitenta anos [...]” (MACKESY, 2020, n. p.).
Outras similaridades aparecem, por exemplo, no que se refere aos protagonistas. O Príncipe e o Menino têm o mesmo tipo físico, a mesma cor de cabelo e mais ou menos a mesma idade. Além disso, o Menino é extremamente gentil, podendo ser considerado um pequeno príncipe em todas as suas atitudes. Há apenas uma oposição entre esses dois personagens: o Príncipe não responde a nenhum questionamento e o Menino faz muitas perguntas. No entanto, isso nem chega a ser um problema, fazendo parecer que o temperamento meio blasé de um garoto complementa o jeito inquieto e curioso do outro.
Quanto ao espaço, as duas histórias também podem parecer antagônicas, à primeira vista, afinal, enquanto o Príncipe faz sua peregrinação pelo deserto, o Menino encontra-se perdido na neve. Porém, em ambos os casos, trata-se de um garoto perdido na imensidão do mundo e interagindo com poucos personagens. Seja no calor intenso ou no frio extremo, é valioso o fato de o espaço ser vasto, privilegiando a solidão e o enredo em si, que, nas obras de Saint-Exupéry e de Mackesy, é construído a partir da breve convivência do protagonista com diferentes interlocutores.
Nesse processo, portanto, não há lugar para distrações ou coisas supérfluas. Todas as ações e todos os diálogos são importantes em si mesmos e convidam o público à contemplação:
As pessoas grandes adoram os números. Quando a gente lhes fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial. Não perguntam nunca: "Qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que prefere? Será que ele coleciona borboletas?" Mas perguntam: "Qual é sua idade? Quantos irmãos tem ele? Quanto pesa? Quanto ganha seu pai?" Somente então é que elas julgam conhecê-lo. (SAINT-EXUPÉRY, 2018, p. 13)
Quando a toupeira surge, o menino está sozinho. Passam o tempo juntos, a contemplar a Natureza selvagem. Acho que a Natureza selvagem é um pouco como a vida — assustadora, por vezes, mas bela. (MACKESY, 2020, n. p.)
O olhar contemplativo recusa a normalidade e o senso comum, além de exigir que se dê um passo fora daquilo que se considera o caminho mais fácil ou mais objetivo. Aliás, para o leitor atual, que é diariamente soterrado por informações, sem ter tempo para refletir sobre cada uma delas, a contemplação e o mundo analógico podem servir de “antídoto à robotização”, tal como afirma Nelly Novaes Coelho (2007).
Por fim, o Príncipe e o Menino assemelham-se por compartilharem momentos de suas histórias com uma Raposa, personagem emblemático nas fábulas. Aliás, em O pequeno príncipe, a Raposa ensina que “cativar” é “criar laços” (SAINT-EXUPÉRY, 2018, p. 53): “[...] se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim o único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...” (SAINT-EXUPÉRY, 2018, p. 54). É exatamente isso que ocorre no livro e no filme O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo. O garoto cria um laço tão forte com os animais que encontra pelo caminho que a amizade deles desencadeia um final surpreendente para a história, rompendo com as expectativas do público e desconstruindo mitos que há tempos perseguem as narrativas infantis e infantojuvenis (que também são muito apreciadas pelos adultos).
Em alguns filmes de animação, a busca do caminho de volta pra casa sustenta todo o enredo. Isso ocorre, por exemplo, em A era do gelo (2002) e Procurando Nemo (2003). No primeiro caso, há mais similaridade com a história de O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo, embora isso se consolide de modo inverso. No final de A era do gelo, o Tigre, o Mamute e a Preguiça conseguem devolver o bebê ao pai, garantindo a volta da criança ao lar. O momento da despedida é doloroso, pois os animais criaram laços com o garotinho. Contudo, a vida em família, e entre iguais, fala mais alto, orientando o desapego dos personagens, em favor do bem-estar da criança.
Vinte anos depois, o filme O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo, de Charlie Mackesy e Peter Baynton, inverte essa lógica, em razão da cultura da diversidade, que está se consolidando, ano após ano. Ao longo dos 34 minutos do filme, o Menino expressa mais uma vez seus sentimentos e suas dúvidas sobre os conceitos de casa e lar. No início, ele diz à Toupeira: “Eu acho que uma casa é um lugar quentinho, com gentileza e luzes” (O MENINO, 2022, grifo nosso). Essa definição chama atenção, porque associa a casa a características específicas, contrariando frases feitas e desgastadas que enaltecem a figura materna e o amor, por exemplo. Entretanto, em meio à sua jornada para tentar encontrar o caminho de volta a casa e à família, o Menino pergunta: “Lar nem sempre é um lugar, é?” (O MENINO, 2022, grifo nosso). No fim da história, essa pergunta é respondida pelo próprio garoto, que chega ao seu destino, mas, em vez de entrar em casa, decide ficar com seus novos amigos.
De início, o público até pode estranhar essa atitude, porém, ao contrário do que acontece em A era do gelo e Procurando Nemo, em nenhum momento, na narrativa de Charlie Mackesy, há indícios de que a família está procurando pelo Menino. Diante disso, o Menino, a Toupeira, a Raposa e o Cavalo (Fig. 5), que se cativaram mutuamente, durante o pouco tempo que passaram juntos, passam a viver juntos, formando uma nova família, na qual as diferenças são vistas como a principal qualidade.
Figura 5: Cena do filme O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo.
Imagem disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dcDF_uUE-Us
Na breve jornada que reuniu os quatro personagens, antes da decisão do Menino, de deixar a casa e partir com seus novos amigos, a inversão dos clichês ocorre de modo sistemático, em todos os diálogos, em tom de motivação e acolhida. Nesse sentido, podem ser destacadas inúmeras falas do filme, que são, aliás, quase idênticas às do livro. Logo no início, demonstrando seu lado delicado e contemplativo, o Menino diz à Toupeira: “Não é esquisito? Só podemos nos ver por fora, mas quase tudo acontece do lado de dentro” (O MENINO, 2022). Em outros momentos, os conselhos tentam mostrar o lado positivo das lágrimas, dos pedidos de ajuda e até mesmo da vida diária:
As lágrimas caem por um motivo e são sinal de força, não de fraqueza. (O MENINO, 2022)
Pedir ajuda não é a mesma coisa que desistir. É se recusar a desistir. (O MENINO, 2022)
Às vezes o simples ato de se levantar e seguir em frente é algo corajoso e grandioso. (O MENINO, 2022)
Dando continuidade às máximas que surpreendem o público, seja pela simplicidade ou por confrontar o senso comum, há mais falas que merecem destaque:
“O que você quer ser quando crescer?”, “Gentil”, disse o menino. (O MENINO, 2022)
Quando estiver perdido, siga o rio e ele o levará para casa. (O MENINO, 2022)
Ser sincero é sempre interessante. (O MENINO, 2022)
Evidentemente, apesar do teor formativo e moralizante dessas palavras, o texto sai do óbvio, pelo menos por enquanto... Afinal, não se pode esquecer de que o diferente de hoje é o óbvio de amanhã. Quando se dita uma tendência, a repetição e o uso indiscriminado levam ao desgaste, gerando, com o tempo, novos clichês de autoajuda.
Contudo, considerando que isso ainda não aconteceu com a história de Charlie Mackesy, vale salientar que livro e filme reagem também aos estereótipos que geralmente são relacionados ao caráter dos animais, no fabulário clássico. Por causa disso, a Raposa não mantém aquela característica de animal ladino e traiçoeiro: “A raposa é, sobretudo, calada e cautelosa, porque a vida a magoou” (MACKESY, 2019, n. p.). Do mesmo modo, a Toupeira não se deixa intimidar facilmente. “Quando se é uma toupeira, o encontro com uma raposa nunca é fácil” (MACKESY, 2019, n. p.). No entanto, na narrativa em questão, a Toupeira é corajosa e, em determinada passagem, até acaba sendo a principal responsável por salvar a vida da Raposa. Completando essa lista, o Cavalo “é a maior coisa que já viram, mas também a mais delicada” (MACKESY, 2019, n. p.). Esse antagonismo, que opõe forma física e caráter, também é explorado neste diálogo (Fig. 6):
Figura 6: Diálogo entre o Menino e a Toupeira (MACKESY, 2019, n. p.).
Entretanto, por fazerem parte da categoria de autoajuda, em dados momentos livro e filme acabam desenterrando os velhos clichês:
A tempestade vai passar. (O MENINO, 2022)
Você é amado e importante e dá ao mundo o que ninguém é capaz de dar. (O MENINO, 2022)
Nunca se esqueça: Você vale muito [...]! (O MENINO, 2022)
Nada supera a gentileza. (O MENINO, 2022)
A partir desse brevíssimo comparativo, entre velhos e novos conselhos, percebe-se que uma das funções de O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo é revitalizar o gênero de autoajuda. Nesse processo, as novidades devem ganhar destaque, mas sem desconsiderar o leitor, que precisa se identificar com a história e com a maioria das situações vividas pelos personagens, em um claro convite à reflexão e ao olhar contemplativo − para os outros e para dentro de si: “Espero que este livro te encoraje, talvez, a viver com coragem, sendo mais bondoso contigo e com os outros, e a pedir ajuda quando precisares — o que é sempre algo corajoso” (MACKESY, 2019, n. p.).
Por essas razões, ao discutirem sobre a literatura de autoajuda, as articulistas Isabela Boscov e Silvia Rogar mencionam livros “como Minutos de Sabedoria ou O Pequeno Príncipe – o decano do ‘texto-mensagem’” e afirmam que, atualmente, “nenhuma editora dá melhor medida da voracidade dos brasileiros por esse tipo de leitura que a carioca Sextante” (BOSCOV; ROGAR, 2009, grifo no original), editora que, aliás, é a responsável pelo lançamento do livro O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo no Brasil. Além disso, as autoras caracterizam a autoajuda como “um gênero pontuado por clichês e uma narrativa em nada refinada”, mas que, para muitos leitores, oferece “o amparo e a inspiração em momentos difíceis” (BOSCOV; ROGAR, 2009).
De acordo com Micki McGee (2005), isso é necessário na sociedade contemporânea, em que tudo é fluido e transitório. Empregos, casamentos e famílias deterioram-se com extrema facilidade, causando insegurança e ansiedade. Evidentemente, não existem fórmulas mágicas para lidar com essas situações. Portanto, aos livros de autoajuda resta lembrar o público da importância de “amar, aceitar, ter paciência, cultivar a alegria, desprender-se das miudezas do cotidiano, trabalhar por um mundo melhor para si e para os outros” − “Conselhos antigos”, mas que “continuam valendo ouro” (BOSCOV; ROGAR, 2009).
Porém, se as coisas já estavam difíceis, devido ao perfil volátil de todas as coisas, neste início de século, com a pandemia de covid-19 tudo ficou pior. Por essa razão, conforme dados divulgados pela plataforma Clube de Autores, em 2020 a venda de livros de autoajuda “aumentou 95% de janeiro a agosto [...] em relação ao apurado no mesmo período de 2019” e, no primeiro semestre de 2021, esse índice evoluiu ainda mais, apresentando novo “aumento de 51% na procura por livros de autoajuda (VETTORAZZO, 2021).
Sem dúvida, a pandemia justifica esse crescimento nos números. O isolamento social foi necessário, mas cobrou um preço altíssimo: ficamos longe das pessoas queridas, esquecemos a sensação de dar e receber abraços e fizemos de nossas casas nossas fortalezas. Além disso, pessoas morriam, adoeciam e famílias eram destruídas, dia após dia. Precisávamos – e continuamos precisando – de todo tipo de ajuda, porque nossa história surpreendeu a tal ponto que a realidade parecia ter sido tirada de um filme, ou de um livro. Em 2020, vivemos os piores momentos e deixamos de viver os melhores. Por isso: Sim! A autoajuda é muito bem-vinda!
REFERÊNCIAS
BOSCOV, I.; ROGAR, S. Nas asas da autoajuda. 2 dez. 2009. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/021209/nas-asas-autoajuda-p-140.shtml>. Acesso em: 2 ago. 2012.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura: um olhar aberto para o mundo. [Sem data]. Disponível em: <http://www.collconsultoria.com/artigo7.htm>. Acesso em: 2 jun. 2007.
MACKESY, Charlie. O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.
MCGEE, Micki. Self-help, Inc.: makeover culture in American life. London: Oxford University Press, 2005.
O MENINO, a toupeira, a raposa e o cavalo. Direção de Charlie Mackesy e Peter Baynton. Reino Unido: NoneMore Productions, Bad Robot Productions e Apple Studios; BBC One, Apple TV+ e BBC iPlayer, 2022. 1 DVD (34 min); son.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2018.
VETTORAZZO, Lucas. Procura por livros de autoajuda cresce 51% até agosto. 30 set. 2021. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/coluna/radar/consumo-de-livros-de-autoajuda-cresce-51-ate-agosto>. Acesso em: 5 jul. 2023.
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* Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.
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