Joana Vasconcelos (1971-) é uma artista plástica francesa, com cidadania portuguesa, que conquistou fama internacional com seu estilo único. Suas criações exaltam a grandiosidade, a mistura de materiais, o uso de elementos cotidianos e, em alguns casos, também os aspectos rústico e artesanal.
Quando se trata de uma arte visual, é sempre melhor mostrar. Portanto, o objetivo deste texto é apresentar uma minigaleria, com exemplos inusitados e positivamente desconcertantes de obras de Joana Vasconcelos.
A primeira delas é Cinderela (2008), que associa o ícone das histórias de fantasia e dos contos de fada a panelas e tampas feitas de aço inox (Fig. 1).
Figura 1: Cinderela (2008), de Joana Vasconcelos. Imagem disponível em: https://www.premiopipa.com/2013/08/joana-vasconcelos-ultimos-dias-em-lisboa/
À primeira vista, a combinação parece estranha e fora de contexto, mas é bom lembrar que a Cinderela não tinha uma vida fácil. Ela fazia todo o trabalho de casa: lavava, limpava, cozinhava, passava... Além disso, era obrigada a servir à madrasta e suas filhas. Portanto, o fato de a artista apresentar o sapato de salto alto inteiramente feito de panelas e tampas representa a dualidade da personagem: o baile, o príncipe e o sapatinho de cristal de um lado; e a vida de trabalho e subserviência que a madrasta oferecia a ela, do outro. Hoje, em pleno século XXI, é possível atribuir outro significado à obra, ainda que fundamentado na dualidade. Dessa forma, a Cinderela moderna transita entre os dois mundos diariamente, em uma jornada dupla, porque trabalha e cuida da casa e dos filhos.
Também relacionada à questão dos gêneros está a obra A noiva (2001-2005), que consiste em um grande lustre feito com centenas de absorvente internos (Fig. 2):
Figura 2: A noiva (2001-2005), de Joana Vasconcelos. Imagem disponível em: https://cl.pinterest.com/pin/665547651154100473/
Nessa peça, a artista investe na glamourização da matéria-prima, já que elementos restritos à higiene íntima feminina transformam-se em um lustre todo branco, em formato similar ao de uma vulva, mas que simula o brilho de cristais e revela imponência em qualquer ambiente.
Fechando de modo exemplar a seção das obras que discutem as relações entre homens e mulheres, Solitário (2018) impressiona pela grandiosidade e pelo fato de usar, principalmente, rodas na base e copos de uísque no topo, para dar forma a um dos objetos de consumo mais cobiçados pelas mulheres: o solitário (Fig. 3).
Figura 3: Solitário (2018), de Joana Vasconcelos. Imagem disponível em: https://www.casatriangulo.com/pt/news/202-joana-vasconcelos-.-i-m-your-mirror-fundacao-serralves-porto-portugal/
O solitário simboliza todas as joias, abrangendo, dessa forma, tudo o que está relacionado à vaidade e à feminilidade. Claro que, de certa forma, qualquer tipo de joia também está conectado à ideia de poder e status. Contudo, nessa obra de Joana Vasconcelos, os elementos usados na criação da peça têm uma importância salutar, afinal, eles representam a bebida que tradicionalmente é relacionada ao universo masculino e à elite e, ao mesmo tempo, os automóveis, que, por oposição às joias, estão no topo da lista de desejo da maioria dos homens. Por último, mas não menos importante, vale ressaltar que o solitário é o anel convencionalmente dado pelo homem à mulher, no dia do noivado. Esse ritual antecede o casamento e assinala o início de um relacionamento mais estável e duradouro. Portanto, o Solitário de Joana Vasconcelos concretiza essa união, tanto no sentido quanto na forma.
Quanto aos segmentos de moda e beleza, naturalmente ligados ao consumo, podem ser apresentadas duas obras de Joana Vasconcelos. A primeira delas é J’adore miss Dior (2013), feita sob encomenda, pelos donos da marca (Fig. 4):
Figura 4: J’adore miss Dior (2013), de Joana Vasconcelos. Imagem disponível em: https://pt.fashionnetwork.com/news/Laco-gigante-de-frascos-de-perfume-de-joana-vasconcelos-em-mostra-coletiva-em-paris,367306.html
A cor rosa e o laço são as características que apresentam Dior em todos os lugares do mundo. Além disso, tanto a cor quanto o objeto realçam-se mutuamente, já que são frequentemente usados para representar a vaidade e, consequentemente, também a feminilidade. Em J’adore miss Dior, foram usadas dezenas de frascos de perfume, intercalados com pequenas lâmpadas de led. Dessa forma, o dourado surge como tonalidade complementar, simbolizando o glamour da indústria da moda e dos cosméticos.
Também problematizando a preocupação com a aparência, em outra obra, intitulada I’ll be your mirror (2018), Joana Vasconcelos utiliza diversos espelhos com moldura dourada para criar uma gigantesca máscara (Fig. 5). Essa justaposição baseia-se na ironia de as pessoas apresentarem-se para os outros de uma maneira, embora o espelho tenha o poder de revelar quem elas realmente são. De fato, a individualidade do ato de se olhar no espelho pode guarda surpresas que nem sempre são agradáveis...
Figura 5: I’ll be your mirror (2018), de Joana Vasconcelos. Imagem disponível em: https://haia.embaixadaportugal.mne.gov.pt/
Considerando o título, que funciona como uma espécie de chave léxica, pode-se interpretar essa obra como uma celebração das relações de alteridade, evidenciando o papel fundamental que o outro desempenha na construção de nossa identidade. Afinal, o que de fato conta é como nos apresentamos para as pessoas. Somos a soma das imagens que apresentamos, em casa, no trabalho e nos demais grupos sociais dos quais participamos.
A fim de consolidar a união entre o natural e o artificial, e entre o caseiro e o industrializado, ligando o espectador ao aconchego do lar e às memórias afetivas, em Pavillon de thé (2012), a artista plástica apresenta um grande bule de ferro, em uma estrutura tridimensional vazada (Fig. 6).
Figura 6: Pavillon de thé (2012), de Joana Vasconcelos. Imagem disponível em: https://www.casatriangulo.com/pt/artists/64-joana-vasconcelos/works/11317-joana-vasconcelos-pavillon-de-the-2012/
Atualmente, essa peça está em exposição, nos jardins do Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, com o diferencial de que o entorno é um imenso gramado e, na base do bule, foram plantados jasmins. Desse modo, como o bom e velho cafezinho, as pessoas são logo conquistadas pelo cheiro inebriante!
Realçando a criticidade que já apareceu, nas esculturas analisadas anteriormente, a obra Call centre (2014-2016) é bastante comentada por público e crítica (Fig. 7), pelo fato de tratar de um incômodo conhecido por todos, afinal, quem nunca se estressou com os tradicionais serviços de atendimento ao cliente?
Figura 7: Call centre (2014-2016), de Joana Vasconcelos. Imagem disponível em: https://barbarapicci.com/2017/07/27/joana-vasconcelos/joana-vasconcelos-call-center-2014-2016/
A escultura usa aparelhos analógicos para formar uma pistola semiautomática calibre 45. As bases dos aparelhos telefônicos criam o cano e o cabo da arma, enquanto os fios e a unidade fixa dos telefones ficam pendentes, de modo a simbolizar o caos frequentemente experimentado, em um call centre.
Todos os exemplos apresentados aqui definem características do estilo das obras de Joana Vasconcelos, que não se restringem aos museus. Suas peças são constantemente expostas em jardins, em outros espaços públicos e até em mansões. Diante disso, e do agigantamento de objetos triviais e cotidianos, destaca-se o ready made, técnica muito usada durante o Dadaísmo, demonstrando que as influências desse movimento de vanguarda permanecem, década após década. Na estética Dadá, Marcel Duchamp referia-se ao “ready-made recíproco”, que consistia em usar “um Rembrandt como tábua de passar ferro’” (Ades, 2000, p. 99). Joana Vasconcelos inverte essa fórmula e transforma instrumentos do dia a dia em obras de arte, com o intuito de criticar e incentivar a reflexão, a partir da “desorganização poética da realidade” (Ades, 2000, p. 88, grifo no original).
Até 22 de setembro de 2024, no Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, Joana Vasconcelos expõe a mostra Extravagâncias, que tem como destaque a obra Valquíria miss Dior (2023), combinando rendas, pedrarias, tecidos de diferentes texturas, lãs, fios e artefatos de cortinas. A peça em questão se diferencia, pelo uso de matérias-primas artesanais. No entanto, o resultado é similar ao de Drag race (2020), obra criada durante a pandemia de covid-19 (Fig. 8):
Figura 8: Drag race (2020), de Joana Vasconcelos. Imagem disponível em: https://marramaque.jor.br/2023/09/22/joana-vasconcelos-ilumina-lisboa-com-plug-in-a-retorno-triunfal-da-artista/
Nesse caso, a extravagância é clara e o contexto pandêmico motivou a combinação de elementos antagônicos, que associam presente e passado, respectivamente: um Porsche 911 Targa Carrera e a primeira fase do estilo barroco, opulenta e repleta de detalhes e arabescos. As plumas cor-de-rosa choque e o dourado sobre o fundo preto consolidam o exagero.
No entanto, esse tipo de extravagância não foi o que me conquistou, no MON. O que me surpreendeu foi o que vi em uma pequena sala, quase imperceptível, ao lado da escada de acesso ao Olho, e com uma tímida placa, na qual se lê: “Maquetes de Joana Vasconcelos”. Foi lá que descobri preciosidades, muitas delas representadas aqui (Figs. 1, 3 e 5), as quais me incentivaram a escrever este texto, depois de conhecer outras obras da artista.
REFERÊNCIAS
ADES, Dawn. Dadá e surrealismo. Em: STANGOS, Nikos (Org.). Conceitos de arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. pp. 81-99.
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Verônica Daniel Kobs: Professora e Coordenadora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Fundadora e autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR. E-mail: danielkobs.veronica@gmail.com
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