Da indústria automobilística japonesa para a literatura. Foi esse o trajeto realizado pelo QR Code. Em seus primórdios, no ano de 1994, o novo formato foi considerado uma evolução do código de barras, sobretudo por dar mais destaque à síntese, pelo fato de ocultar aquela trilha quase infinita de números sob um grande quadrado feito de quadros menores, que se alternam com a cor de fundo do QR Code. É por isso que QR Code significa Quick Response Code (ou código de resposta rápida).
No Brasil, em 2016, o QR Code ampliou seus domínios e começou a aparecer timidamente, no rodapé dos cupons fiscais. A partir daí, esse código se alastrou e hoje serve para quase tudo. É possível converter imagens, fotos, textos escritos, URLs, sons, localizações do Google Maps. Tudo pode virar um QR Code. Além disso, esses códigos podem ser gerados e decifrados por qualquer pessoa. Não é preciso ser um especialista em TI para fazer isso! Basta uma busca rápida na Internet, usando as palavras-chave gerar QR Code, e pronto. Podemos escolher o que vamos converter, podemos definir as cores do fundo e do código, o nível de legibilidade e até a forma. Há, até mesmo, a opção de inserir logo e imagens, para aqueles que desejam gerar um QR Code totalmente personalizado.
Com toda essa versatilidade, desde 2018 o QR Code passou a ser usado também na literatura, primeiro como intertexto e depois como texto em si. Existem narrativas literárias que interrompem a história para inserir um QR Code, o qual, por sua vez, traz um complemento ao enredo. Pode ser uma música, um poema, uma ilustração, etc., e sempre que ocorre essa interferência, o QR Code desempenha uma função secundária, mas, ainda assim, essencial ao sentido do texto que está sendo lido. Assim como as notas de rodapé e os hiperlinks, os QR Codes dão liberdade ao leitor. Aquele mais acomodado pode pular os códigos, apesar de saber que essa escolha resultará em uma interpretação ineficiente e incompleta. Entretanto, mesmo assim, alguns leitores decidem não decifrar os códigos, para não desvirtuarem a continuidade e a linearidade do processo de leitura tradicional. Felizmente, há aqueles leitores curiosos e colaborativos, que respondem positivamente ao caráter lúdico e enigmático dos QR Codes, afinal, só decifrando os códigos é possível saber do que se trata e como aquele elemento intertextual contribui com o sentido da narrativa literária.
Em outra vertente, o QR Code pode disponibilizar um recurso artístico que não visa complementar a história só em determinado trecho. Em vez disso, a ideia é que a relação entre artes se estabeleça do início ao fim do livro, como mostra este exemplo, realizado pelo escritor Rodrigo Feres:
O escritor Rodrigo Feres trouxe uma novidade ao mundo dos e-books. Ele desenvolveu uma trilha sonora para ser apreciada durante a leitura do livro “Tudo o Que Não Tem Fim” [...].
[...] um QR Code foi inserido na orelha da publicação, permitindo que a música possa ser ouvida no celular enquanto o leitor está com a obra em mãos. (OLIVEIRA, 2021)
Nesse caso, ler o livro ouvindo a trilha sonora sugerida pelo autor faz toda a diferença, já que a música deve ser combinada ao enredo e essa associação interfere de modo decisivo no aspecto semântico. Com a música, o texto se altera e, se mudássemos a trilha sonora, teríamos, ainda, um novo texto, e outro, e mais outro — se continuássemos a variar o repertório de sons que embalassem nossa leitura.
Em outro projeto literário, o QR Code é responsável pelo peritexto, que, segundo Gerárd Genette (2009), abrange os materiais que dizem respeito ao próprio livro e que são definidos pelo editor, em conjunto com o autor. Trata-se do livro Contos de Hans Christian Andersen, organizado por Regina Drummond. A publicação “traz audiodescrição e tradução em Libras que podem ser acessadas por QR Code” (ELO EDITORA, 2021). A iniciativa é bem-vinda, porque garante a acessibilidade às pessoas cegas e surdas, além de multiplicar as mídias divulgadoras da obra.
Outro uso do QR Code na literatura pode ser verificado no livro de estreia de Bruno Sanches:
Com o objetivo de que a leitura não acabasse com o fim do livro, “O Fim e o Começo” [do autor Bruno Sanches] traz conteúdos exclusivos na internet. Um QR Code direciona o leitor para uma página de conteúdo extra, incluindo clipes das músicas citadas nos contos e depoimentos do autor. (OBA, 2021)
Nesse exemplo, há duas vertentes: a) a interartística, pelo fato de o QR Code dar ao leitor acesso aos clipes usados na história; b) a do epitexto, que, conforme Genette (2009), diz respeito a materiais como entrevistas, críticas ou, como mencionado acima, testemunhos do autor sobre a própria obra. O importante é que, em ambos os casos, o livro impresso, por meio do QR Code, permite o acesso a diferentes mídias e sites, concretizando o que Henry Jenkins denomina “plataformas cruzadas” (JENKINS, 2013). Nesse procedimento, o autor oferece um “conteúdo extra” (OBA, 2021), direcionado àqueles “fãs mais dedicados” e permitindo a “expansão das histórias” (JENKINS, 2013). Desse modo, a literatura reverbera, indo além do livro.
Na etapa mais audaciosa de sua escalada, o QR Code pode também ser o texto em si. De coadjuvante, ele assume o papel principal, na literatura. Para exemplificar esse feito, vejamos três textos:
Texto 1: Bruxas, de Carlos Seabra. Disponível em: <https://br.pinterest.com/cseabra/qr-contos/>
Texto 2: Cadáver, de Ana Mello. Disponível em: <https://br.pinterest.com/cseabra/qr-contos/>
Texto 3: Histórias, de Jarbas N. Barato. Disponível em: <https://br.pinterest.com/cseabra/qr-contos/>
À primeira vista, não é possível saber quais são o tema e a estrutura do texto. No entanto, vale destacar que todos os exemplos citados aqui são brevíssimos, muito similares aos nanocontos, aos microcontos ou aos posts de 140 caracteres da twitteratura. Outro fato importantíssimo é a utilização do QR Code como nova mídia ou como novo veículo de comunicação. Nesta era digital, continuamos tendo acesso ao livro impresso — que, para muitos, é insubstituível — mas também contamos com a vantagem de ter um texto literário (seja ele grande ou pequeno) encapsulado no atual QR Code, que pode ser facilmente enviado a qualquer pessoa e acessado por diferentes canais: em sites capazes de ler o código, ou por meio do smartphone.
Bem... Nossa discussão sobre os muitos usos do QR Code na literatura está chegando ao fim... Contudo, se você deseja ler o final deste texto, não deixe de apontar a câmera de seu celular para o código que aparece abaixo:
Texto 4: Parte final deste texto, escrito por Verônica Daniel Kobs.
REFERÊNCIAS
BARATO, J. N. Histórias. Disponível em: <https://br.pinterest.com/cseabra/qr-contos/>. Acesso em: 21 abr. 2021.
CANDIDO, A. Direitos humanos e literatura. Disponível em: <https://bibliaspa.org/wp-content/uploads/2014/09/direitos-humanos-e-literatura-por-antonio-candido.pdf>. Acesso em: 9 out. 2019.
COELHO, N. N. Literatura: um olhar aberto para o mundo. Disponível em: <http://www.collconsultoria.com/artigo7.htm>. Acesso em: 2 jun. 2007.
ELO EDITORA. Contos de Hans Christian Andersen. Disponível em: <https://www.eloeditora.com.br/produto/contos-de-hans-christian-andersen/>. Acesso em: 21 abr. 2021.
GENETTE, G. Paratextos editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
LLOSA, M. V. Elogio de la lectura y la ficción. Disponível em:
<http://elpais.com/diario/2010/12/08/cultura/1291762802_850215.html>. Acesso em: 23 jun. 2015.
MELLO, A. Cadáver. Disponível em: <https://br.pinterest.com/cseabra/qr-contos/>. Acesso em: 21 abr. 2021.
OBA, J. Bauruense, criador de clube de leitura na cidade, lança seu primeiro livro de contos. Disponível em: <https://www.socialbauru.com.br/2020/07/14/bauruense-criador-clube-de-leitura-lanca-seu-primeiro-livro-contos/>. Acesso em: 21 abr. 2021.
OLIVEIRA, C. Rodrigo Feres lança livro com trilha sonora. Disponível em: <https://www.hojeemdia.com.br/almanaque/literatura/rodrigo-feres-lan%C3%A7a-livro-com-trilha-sonora-1.392663>. Acesso em: 21 abr. 2021.
SEABRA, C. Bruxas. Disponível em: <https://br.pinterest.com/cseabra/qr-contos/>. Acesso em: 21 abr. 2021.
Texto originalmente publicado no blog Recorte Lírico, em 2021.
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* Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.
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