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Foto do escritorVerônica Daniel Kobs

RRR: REVOLTA, REBELIÃO E REVOLUÇÃO PERDIDAS

Este texto contém spoiler.

RRR: Revolta, rebelião, revolução (IND, 2022), dirigido por S. S. Rajamouli, dá voz aos oprimidos e tenta mostrar que a superação é sempre uma possibilidade. Nas principais premiações do cinema mundial, o filme era considerado o azarão. No entanto, aos poucos, a produção conquistou o público e isso chamou a atenção da crítica especializada.

Na temporada de 2022, o longa indiano venceu nas seguintes categorias: Melhor Diretor (New York Film Critics Ciecle Award); Melhor Filme Estrangeiro (Critics’ Choice Award); Menção Honrosa (Satellite Award); e Melhor Canção Original (Oscar). O sucesso do filme, sem dúvida, está relacionado ao carisma dos protagonistas, à legitimação do local de fala e, claro, ao ritmo intenso da trama, entremeada à música e à dança.

Por esse motivo, a produção é bastante representativa do estilo cinematográfico de Bollywood, que alia a energia contagiante do elenco à alegria do público. A plateia indiana é um espetáculo à parte, pois as pessoas torcem, vibram e dançam nas salas de cinema, motivadas pelos números musicais e também pelos encontros e desencontros das histórias.

Nas construções narrativas, Bollywood privilegia o melodrama e as aventuras, em um ambiente urbano, com inúmeras referências ao cotidiano. Além disso, os enredos costumam ser longos e, em várias cenas, o espetáculo se faz presente, não apenas nos números musicais, mas também nas sequências de ação.

De muitos modos, os filmes produzidos em Bollywood lembram o período áureo do cinema brasileiro, nas décadas de 1940 e 1950, com as chanchadas. Naquela época, o público era maior, pois não se reduzia a um só local. Antes da era dos shoppings, os amantes da sétima arte lotavam as salas de exibição, espalhadas pelas cidades. Além disso, as histórias eram rocambolescas, abrangendo música, dança, comédia, drama e muita ação. Sendo assim, os atores tinham que ser completos, já que todos, vez ou outra, protagonizavam algum tipo de espetáculo, ao longo da história. Até mesmo os lançamentos dos filmes e das músicas eram ostensivamente planejados. As chanchadas eram anunciadas antes do carnaval, depois de as músicas terem feito uma temporada de sucesso nas rádios. Assim, as marchinhas do filme também embalavam as folias carnavalescas.

Quanto ao conteúdo, RRR conta a história da Índia na década de 1920, dando destaque à tumultuada relação com os colonizadores ingleses. Evidentemente, nesse contexto, sobram exemplos de exploração e abuso de poder. No entanto, os oprimidos mostram tenacidade, resistência e desejo de vingança depois que os homens do governador Scott Buxton (Ryan Stevenson), representante da Inglaterra no território indiano, sequestram uma criança em uma tribo, nos arredores da cidade.

Com violência extrema, a menina é tirada da mãe e levada como se fosse um objeto exótico, desejado pela mulher do líder britânico. Diante disso, a tribo confia a Komaram Bheem (Nandamuri Taraka Rama Rao Jr.) a missão de ir à cidade e resgatar a garota. Por esse motivo, o personagem se prepara para ter sucesso, encarando uma árdua rotina de treinos, que incluía sucessivas batalhas com tigres (Fig. 1). A cena a seguir representa o enfrentamento dos opressores, já que Komaram tenta derrotar um tigre, que serve de metáfora ao poder hegemônico, no filme representado pelo governador Scott.

Figura 1:Bheem em combate com um tigre

Imagem disponível em: <https://personaunesp.com.br/rrr-critica/>

O tom de nacionalismo é claro no filme e, por essa razão, ao final, exaltam-se as cores da bandeira indiana original, remetendo ao ano de 1906 e homenageando a cultura autóctone.

Embora a História já tenha sido escrita, a resiliência da tribo tenta superar o complexo de colonizado, assumindo as rédeas do próprio destino, mesmo contra a potência inglesa. Como consequência, a ordem é restabelecida: a menina volta para a tribo e o governador Scott é derrotado. A cena da morte dele é irônica, em consonância com a reviravolta causada pela ação popular, e o sangue do colonizador mancha o lema incansavelmente repetido pelas autoridades britânicas: “O sol nunca se põe no Império Inglês” (RRR, 2022).

No entanto, para chegar à mais alta instância do poder, o destino acaba juntando dois homens, um representante do povo (Bheem) e um policial (Ramaraju, representado pelo ator Ram Charan), que serve como ponte para o governador e para o alto escalão militar. Além disso, uma mulher, Jennifer (Olivia Morris), também se junta a Bheem. Ela é outra facilitadora dos planos da tribo, que deseja reaver a garota sequestrada, em honra da mãe, que foi morta durante o ataque selvagem dos britânicos. Jennifer é branca e rica, razão pela qual frequenta a mansão do governador. No entanto, ela simpatiza com o herói indiano desde o início da história, quando uma atração mútua sela os destinos dos personagens. Quanto à relação de Bheem e Ramaraju, também obra do acaso, os caminhos deles se cruzaram em uma tentativa de salvamento de um garoto, empreitada protagonizada de modo espetacular, pelos protagonistas do filme (Fig. 2):


Figura 2: Bheem e Ramaraju na cena do salvamento

Imagem disponível em: <https://revistacontinente.com.br/edicoes/262/rrr--revolta--rebeliao--revolucao>

A partir daí, juntos, os dois personagens inserem-se em locais e eventos frequentados pela elite, para conhecer o oponente e tentar minar o sistema por dentro. De início, principalmente Komaram Bheem sofre preconceito da elite branca, mas Alluri Sita Ramaraju sempre sai em defesa de seu parceiro, solidarizando-se com ele, na tentativa de reverter a humilhação em algo positivo, a fim de que todos os presentes possam conhecer a realidade das pessoas comuns, fazendo prevalecer as vantagens, e não as derrotas (Fig. 3).

Figura 3: Bheem e Ramaraju dançando “Naatu naatu”, música vencedora do Oscar

Imagem disponível em: <https://scroll.in/reel/1041879/the-story-behind-the-award-winning-song-naatu-naatu-from-rrr>

Apesar de os protagonistas do filme serem baseados em pessoas reais, a trama é fictícia, pois Bheem e Ramaraju nunca conviveram. Entretanto, esses personagens históricos compartilharam o mesmo contexto e a mesma cultura por cerca de vinte anos. Cada um a seu modo foi destaque na liderança de movimentos que visavam ao combate do império britânico. Por isso, no filme, como demonstra a cena acima, Bheem e Ramaraju, ao som da música “Naatu naatu”, vencedora da categoria de Melhor Canção Original, no Oscar, representam o triunfo dos oprimidos na cidade. Ramaraju não se deixa dominar por seu cargo de subalterno do governo inglês na colônia indiana, assim como Bheem, um campesino, colocado à margem do centro e, consequentemente, da urbanidade, não se deixa afastar pelas fronteiras, nem pelas normas impostas pelos colonizadores.

Dessa forma, Bheem e Ramaraju encaixam-se no que Glauber Rocha classificava como famintos (ou oprimidos). Ainda conforme o líder do Cinema Novo, a superação dessa condição exige um comportamento revolucionário: “[...] o comportamento exato de um faminto é a violência e a violência de um faminto não é primitivismo” (ROCHA, 2008). Portanto, os desejos dos protagonistas de RRR ̶ de enfrentar os ingleses, vingar suas comunidades e assumir o controle de suas próprias vidas ̶ alinham-se a este princípio do Cinema Novo:

[...] uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizada sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo o horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino. (ROCHA, 2008)

Entretanto, é preciso destacar que a ideologia de Glauber Rocha não era um estímulo à barbárie. Tratava-se, sim, de uma atitude desalienante e crítica (GOMES, 1980), calcada na observação atenta da sociedade e das relações complexas que se estabelecem dentro dela, como consequência do poder hegemônico:

[...] essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação, mas um amor de ação e transformação. (ROCHA, 2008)

Estudioso do Cinema Novo, Ismail Xavier, no livro Sertão-mar, destina um capítulo inteiro à análise da estética da violência e de sua importância, na obra de Glauber Rocha e nas características culturais do Brasil, desde 1950. No fragmento a seguir, o crítico considera a violência como “‘possibilidade única’ do colonizado frente à dominação a ele imposta, num tipo de argumentação que toma como base a dialética do senhor/escravo” (XAVIER, 1983, p. 154, grifo no original). Dessa forma, “a afirmação do eu se dá pela negação do outro” (XAVIER, 1983, p. 154). Com base nessa interpretação, fica claro que é necessário um ponto de virada, no qual os oprimidos decidem falar alto o bastante, para que seus anseios e revoltas sejam ouvidos, e para que eles abandonem a subalternidade, em favor do protagonismo. Nesse sentido, além de RRR, podem ser citadas produções cinematográficas anteriores, as quais tematizaram a mesma questão, de dominação e revolta: Bacurau (BRA, 2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles; Parasita (KOR, 2019), de Bong Joon-ho; e Glass Onion (EUA, 2022), de Rian Johnson.

Embora essas produções coincidam na retomada de uma atitude revolucionária, estudos relativamente recentes apontam para a impossibilidade disso, na sociedade contemporânea. Segundo o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han:

É importante distinguir entre um poder que impõe e um poder que estabiliza. Hoje, o poder que estabiliza o sistema assume um disfarce amigável e smart, tornando-se invisível e inatacável. O sujeito submetido nem sequer tem consciência da sua submissão. O sujeito pensa-se livre. Esta técnica de dominação neutraliza a resistência de modo eficaz. A dominação que reprime e ataca a liberdade não é estável. Por isso o regime neoliberal é tão estável [...]. (HAN, 2023)

Com base nessa reflexão, pode-se afirmar que a cortina de fumaça criada pelo regime é muito similar àquela instaurada pelo consumismo. Para os mais desavisados, o consumo é um indicativo de liberdade. Ledo engano! Afinal, consumimos os produtos que nos são ofertados. Onde está a liberdade, então, se a escolha restringe-se àquilo que já foi determinado por alguém?

Dessa forma, o filme RRR, antes de ser uma conclamação, é uma tentativa de compensar a falta de criticidade e de consciência da submissão. Antes de querer lutar, é preciso se dar conta das imposições e do poder que as instaura. Desalienação — este é o insight capaz de mudar vidas (Cf. GOMES, 1980).



REFERÊNCIAS

GOMES, P. E. de S. Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

HAN, B.-C. Por que é que hoje nenhuma revolução é possível? Disponível em: <https://www.revistapunkto.com/2015/12/porque-e-que-hoje-nenhuma-revolucao-e.html>. Acesso em: 8 out. 2023.

ROCHA, G. Uma estética da fome. Disponível em: <http://tropicalia.uol.com.br/sit

e/internas/leituras_gg_cinenovo.php>. Acesso em: 24 mai. 2008.

RRR: Revolta, rebelião, revolução. Direção de S. S. Rajamouli. IND: DVV Entertainments; Lyca Productions, Pen Studios e Netflix, 2022. 1 DVD (187 min); son.

XAVIER, I. Sertão-mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.


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* Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.

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