De 29 de setembro a 5 de novembro de 2023, Curitiba recebeu a exposição Van Gogh & impressionistas, no shopping Estação. O complexo da mostra, com 1.600 m2, reunia dados da vida e da obra do pintor holandês Vincent Willem Van Gogh (1853-1890), em painéis luminosos e em um galpão, no qual projeções de imagens de alguns dos quadros mais icônicos do artista envolviam o público, em uma experiência imersiva de luzes e sons.
Sempre fui fã do Impressionismo, estética que influenciou o Simbolismo na literatura. No entanto, apesar de meu amor pelas Letras, considerando os anos finais do século XIX, minha predileção pela arte pictórica é inegável. A sugestão, a falta de linhas firmes e a mistura das cores sempre me atraíram. Claro que, na exposição digital, tudo isso estava presente, nas imagens projetadas, mas, infelizmente, as pinceladas densas e aparentemente em desalinho não podiam ser percebidas da mesma maneira. Portanto, já na antessala, senti falta da materialidade dos quadros.
No início, fiquei surpresa com minha reação. Porém, logo relacionei minha postura com meu gosto pelos livros físicos, palpáveis e manuseáveis, nas bibliotecas (inclusive na minha). Apesar disso, minha decepção com a exposição tecnológica do período impressionista de fato me incomodou, tanto que, por alguns minutos, dividi minha atenção entre as telas projetadas e um pensamento incessante sobre o motivo daquela aversão. Então me dei conta de que, pelo espaço que a tecnologia ocupa hoje, em nosso cotidiano, eu simplesmente esperava mais... Em 2011, durante as festividades de Natal em Curitiba, um espetáculo usou imagens projetadas sobre a fachada de prédios históricos (do Paço da Liberdade, naquela ocasião), para relembrar o ano de 1975, quando nevou na cidade. Isso foi há 12 anos, quando o recurso tecnológico utilizado no show ainda era novidade. Contudo, hoje, em 2023, esse encanto se desfez e senti como se aquela exposição, batizada de imersiva, tivesse chegado com mais de uma década de atraso...
Apesar disso, é óbvio que a exposição virtual tinha qualidades, as quais vou tentar demonstrar aqui, começando pela espacialidade. De maneira simplificada, pode-se dizer que, por oposição à literatura, que é temporal, a pintura é uma arte espacial e, na proposta do evento, isso se intensifica, como se as paisagens excedessem a moldura e dominassem completamente o espaço, inscrevendo-se no chão, nas paredes e até no teto. Tomando por base os estudos de Étienne Souriau, a pintura focaliza a cor, sendo uma “arte de segundo grau”, também chamada de “representativa”, pelo fato de os quadros “evocarem algo que só adquire realidade para e pelos pensamentos do espectador” (SOURIAU, 1983, p. 94). Entretanto, quando as projeções ampliam o alcance da imagem pictórica, a obra invade o espaço da realidade (e do espectador), ultrapassando barreiras e conquistando um novo território, antes inexplorado. Nesse sentido, em vez de permitir que o público entre no quadro (como demonstrado em cenas de alguns filmes, a exemplo da série Uma noite no museu e da obra-prima Sonhos, de Akira Kurosawa), a ilusão tecnológica faz com que a imagem se mova, envolvendo o espectador em um mundo de cores e magia.
Aliás, no longa dirigido por Kurosawa, o personagem inicia sua jornada em busca do mestre Van Gogh em um cenário que recria o famoso quadro “A Ponte de Langlois em Arles”, no qual predominam as pedras e os tons de verde, amarelo, alaranjado e azul (Fig. 1). Usando essa mesma obra, a exposição tecnológica projetou a imagem das pedras sobre o chão e as paredes do galpão, o que me provocou a sensação de estar, ao mesmo tempo, no quadro impressionista e no filme do diretor japonês.
Figura 1: Tela “A Ponte de Langlois em Arles” (1888), de Van Gogh.
Imagem disponível em: <https://virusdaarte.net/van-gogh-a-ponte-de-langlois/>
Utilizando outra tela de Van Gogh — “Amendoeiras em flor” (1890) —, que marcou a fase da influência da arte japonesa sobre a pintura do artista holandês, a exposição fez uso da sobreposição e do movimento para conferir narratividade à imagem, ao mostrar várias pétalas caindo (Fig. 2).
Figura 2: Tela “Amendoeiras em flor”, de Van Gogh (à esq.), e adaptação apresentada na exposição digital (à dir.). Imagens disponíveis em: <https://santhatela.com.br/vincent-van-gogh/van-gogh-amendoeira-em-flor/> e <https://oregional.net/cultura-leva-servidores-para-apreciar-a-arte-de-van-gogh-impressionistas-143506>.
No entanto, após alguns segundos de observação atenta, percebia-se que as pétalas caíam, mas as flores das amendoeiras continuavam intactas, consolidando o uso da sobreposição e do molde vazado, para que a imagem de cima não cobrisse por completo a imagem de baixo. Além disso, em outras paisagens, a sobreposição também foi responsável por dar movimento à imagem, por meio de uma espécie de decalque em desalinho. O desvio era mínimo, mas já era suficiente para mover barcos e ondas. A hipótese é de que um segundo aparelho, posicionado estrategicamente, projetasse uma imagem sobre ela mesma, movendo-se lentamente para os lados, como se tentasse obter uma focalização ideal.
Na tentativa de aproximar e distanciar o olhar do espectador em relação a cada tela, a exposição também variava os tamanhos das imagens: as maiores permitiam o zoom e as menores forneciam a visão geral de cada cena. Outro recurso muito bem utilizado foi a “panorâmica dramática” (MARTIN, 2005, p. 66), acrescentada à mobilidade, já que uma mesma imagem surgia em diferentes lugares, ora se aproximando ora se distanciando do público. Segundo Marcel Martin, essa estratégia visual consegue “estabelecer relações espaciais, ou entre um indivíduo que olha a cena e o objeto observado, ou então entre um ou mais indivíduos, por um lado, e um ou vários outros que observam, por outro lado” (MARTIN, 2005, p. 66). Evidentemente, o efeito desse recurso é positivo, considerando que, na exposição digital, o público pode se movimentar livremente pelo espaço, durante as projeções que adaptam cada quadro pintado por Van Gogh.
Com o mesmo propósito imersivo, em Van Gogh & impressionistas, há um totem central, no qual também as imagens são projetadas, causando, às vezes, uma sensação de tridimensionalidade, como ocorre no caso deste autorretrato do pintor (Fig. 3).
Figura 3: “Autorretrato” (1887), de Van Gogh (à esq.), e adaptação apresentada no totem central da exposição (à dir.). Imagens disponíveis em: <https://santhatela.com.br/vincent-van-gogh/van-gogh-auto-retrato-1887/> e Arquivo pessoal (Foto tirada pela autora deste texto).
No exemplo acima, utilizou-se o “grande plano”, que Marcel Martin explica, retomando as palavras de Jean Epstein, para quem esse recurso visual focaliza um “rosto, ampliado pela lente”, com o intuito de demonstrar a “presença real” e a “evidência de vida” (MARTIN, 2005, p. 48). Como se não bastasse a escolha desse tipo de plano, pode-se verificar também a semelhança com os efeitos provocados pelo uso de um ângulo específico, denominado “plano contrapicado”, que “engrandece” o sujeito representado (MARTIN, 2005, p. 51). Esses efeitos são potencializados, no espetáculo virtual, pelo totem em si e pela imagem projetada sobre ele, já que, nesse momento, o público vê Van Gogh piscando algumas vezes, lentamente, em uma tentativa de imitar o movimento humano com maestria.
Sem dúvida, a ilusão de movimento confere temporalidade e ritmo para as imagens, que saem dos limites da pintura para alcançar a dinamicidade das narrativas. De acordo com o teórico Marcel Martin, no plano sensorial os movimentos correspondem “aos efeitos da montagem rápida sobre o plano intelectual (cerebral)” (MARTIN, 2005, p. 58). Dessa forma, “um quadro rígido” torna-se “fluido e vivo”, em meio a uma espécie de “movimento balético” ou “coreográfico”, “modificando a cada instante o ponto de vista do espectador” (MARTIN, 2005, p. 57).
Na exposição digital, cada detalhe fez a diferença, contribuindo para o aspecto imersivo do evento e, nesse sentido, a música também foi usada. Dessa forma, imagens, contrastes, cores, movimentos e sons criam uma atmosfera “polissensorial” (WUNENBURGER, 1999, p. 33). A versão tecnológica baseada no quadro “Quarto em Arles” (1888), de Van Gogh, cumpriu todos os quesitos relacionados à imersão que o espetáculo ofereceu ao público e, para isso, o principal recurso utilizado foi a simultaneidade entre as projeções e a descrição do quarto, apresentada por meio de uma gravação em áudio. Em diversos materiais sobre a obra do artista holandês, há menção a essa tela, que traz linhas retas, cores claras (com pequena variação cromática), além de mostrar o quarto com a janela fechada ― tudo para sugerir uma ideia de repouso, de acordo com o próprio pintor (Fig. 4).
Figura 4: Quadro “Quarto em Arles”, de Van Gogh.
Imagem disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/31/cultura/1477935352_750416.html>.
Um último estratagema que foi usado de modo notável, em Van Gogh & impressionistas, associava a escuridão total à luminosidade, momento em que eram projetadas imagens de telas com predominância de cores intensas, como o azul e o amarelo, e seus matizes. Portanto, a finalidade primordial do espaço totalmente preto é o contraste (MARTIN, 2005, p. 73). Dessa forma, gerava-se uma maior “impressão de profundidade espacial”, além de criar “uma atmosfera emocional e até certos efeitos dramáticos” (MARTIN, 2005, p. 72). As duas obras que foram usadas na exposição para desencadear esses efeitos foram, principalmente, “Lírios” (1889) e “Girassóis” (1888), já que o azul dos lírios e o amarelo dos girassóis aparecem em diversos quadros do artista. Aliás, essas telas apresentam diferentes versões, que variam as tonalidades e a luminosidade (Fig. 5), não apenas pela ação do tempo sobre a tinta, mas também por opção do próprio artista.
Figura 5: Os quadros “Girassóis” e “Lírios” (à esq.), de Van Gogh, e suas adaptações digitais (à dir.). Imagens disponíveis em: <https://www.viagemparaholanda.com>, <https://pimentanativa.com>, <https://www.arteeblog.com> e <https://aprovinciadopara.com.br>.
Os fãs de Van Gogh sabem da importância dos girassóis nos quadros do pintor. Inclusive, a tela apresentada na figura acima, datada de 1888, é referência para os estudiosos da pintura, já que se trata de uma natureza morta que apresenta um contraste para destacar a parte superior, das flores, gerando impressão de tridimensionalidade. Além disso, o amarelo transformou-se em uma cor fundamental na estética do artista, por ter sido usado em inúmeras telas, e porque a visão amarelada era uma condição real, experimentada por Van Gogh ao longo dos anos, em decorrência das doenças de que sofria e dos medicamentos prescritos a ele.
Assim como os girassóis, os lírios foram marcantes nos quadros do artista, que, além do gosto pessoal por essa flor, usava-a como modo de aperfeiçoar a proximidade de seus quadros com a estética japonesa. E há, ainda, a importância simbólica dos lírios e da cor azul, respectivamente associados à dualidade morte/vida e ao desejo intenso de tranquilidade. Por essas razões, a cor azul foi presença constante em inúmeras telas, posteriormente agrupadas no período que ficou conhecido como a fase azul da obra de Van Gogh.
Com base nos exemplos apresentados neste texto, não se pode negar que, de muitas maneiras, a exposição Van Gogh & impressionistas usou a tecnologia digital para envolver mais o público — nos quadros, na estética e na vida do pintor holandês. No entanto, para uma espectadora como eu, que conheceu e amou a cultura analógica, as projeções das imagens, embora belíssimas, soaram falsas e menos intensas do que os quadros físicos, nos quais podemos perceber a textura da tinta, resultante das pinceladas vigorosas e perfeitamente desordenadas de seu criador.
REFERÊNCIAS
MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005.
SOURIAU, É. A correspondência das artes: elementos de estética comparada. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1983.
WUNENBURGER, J.-J. Filosofia delle immagini. Torino: Giulio Einaudi, 1999.
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* Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.
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