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XICA DA SILVA (1976), DE CACÁ DIEGUES: HERANÇAS DO CINEMA NOVO E DA COLONIZAÇÃO

Foto do escritor: Verônica Daniel KobsVerônica Daniel Kobs

Este texto homenageia Cacá Diegues (1940-2025), que acompanhou de perto o Cinema Novo. Como consequência, a estética cinematográfica desse diretor foi inspirada no movimento brasileiro que se consolidou como um marco no cinema nacional, ao dar continuidade à literatura politizada da segunda fase modernista.

Para concretizar esse propósito, o Cinema Novo precisou reagir fortemente às tendências cinematográficas anteriores. Norteado pela ruptura que o grupo pretendia fazer, uma revisão da concepção de brasilidade era urgente. O que se exigia, no entanto, não era o purismo, mas uma postura menos submissa e menos pautada pelo padrão hollywoodiano, até então dominante.

Logo, a necessidade de mudar isso, somada às mudanças político-sociais que invadiam o país, sobretudo com a política desenvolvimentista de Juscelino, para a qual a construção de Brasília serve de metáfora, acaba por desencadear uma transformação também cultural, daí o fato de Cacá Diegues referir-se ao Cinema Novo como “um grande processo de transformação da sociedade brasileira que alcança a atividade cinematográfica” (Stam; Johnson, 1995, p. 65).

Com tantas mudanças, era imperativo buscar uma forma nova e revolucionária de fazer cinema. Era necessário mostrar as marcas do subdesenvolvimento brasileiro, pois só assim o público poderia perceber a necessidade de tantas transformações e talvez aderir à revolução. Esse raciocínio eliminou de vez o vínculo entre as produções brasileiras e hollywoodianas e serviu, ainda, como argumento para a ruptura com a cultura dominante.


Fonte da imagem: <carlosdiegues.com.br>

 

Para sintetizar a proposta do Cinema Novo, emprestemos as palavras de José Carlos Avellar, que menciona como principal característica do movimento o “impulso documental, porque por trás de toda essa coisa improvisada, imperfeita, mal-acabada, estava o sentimento de que o bem-acabado não nos retratava […]” (Moraes, 1986, p. 64).

A transição, enfim, completava-se e o Cinema Novo marcava sua reação, inclusive delineando seu modus operandi. Em conformidade com esse movimento sinuoso e natural de evolução, ressalte-se o caráter fluido e instável da identidade cultural, que vai se modificando, influenciada pela construção lenta e incessante da História. Nas palavras de Cacá Diegues:

 

Os objetivos do Cinema Novo e de minha geração eram muito simples e apenas três: mudar a história do cinema, a do Brasil e a do mundo. Por trás dessa megalomania, estava uma coragem saudável, uma febre ardente de fazer, uma disposição para todas as experiências. Não sei dizer se o Cinema Novo inventou um cinema para o país ou um país no cinema. Só sei que foi uma bela utopia cinematográfica, que envolvia moral, política e estética. (Cunha, 2006)


O filme Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, foi estrelado por Zezé Mota e teve dupla base literária: o livro Memórias do distrito diamantino, escrito em 1868, por Joaquim Felício dos Santos; e o romance Xica da Silva, publicado, na década de 1970, pelo sobrinho-neto de Joaquim Felício, João Felício dos Santos, que, inclusive, assina o roteiro do filme, junto com o diretor.

 

 

No longa, no que tange a crítica, é importante o disfarce, que, de acordo com Miriam Rossini, é o modo de o diretor falar aos censores, logo no início, na cena em que João Fernandes, o novo contratador de diamantes, chega à cidade e encontra um grupo de músicos. Um deles, Matias, começa a inteirar o visitante da corrupção que acontece ali. Denuncia, por exemplo, o conluio entre autoridades e sonegadores, que dividem os lucros que seriam da Coroa, e a interceptação de um cofre de ouro em pó que estava a caminho de Lisboa. Porém, é interrompido por outro músico, que diz que o povo fala demais e que eles, como artistas, não têm nada a ver com isso.

O recurso é eficaz, embora falacioso. O importante é que Cacá Diegues consegue fazer a relação entre ele próprio e os músicos, passando a falsa ideia de que assuntos políticos não competem à arte. O artifício usado por ele não era raro. No espetáculo teatral Ai que saudades do Lago, sobre a vida e a obra de Mário Lago, há uma passagem saborosíssima, que conta a luta do escritor, autor de várias marchinhas de carnaval, contra a censura. Certa vez, o escritor quis falar sobre a desigualdade social e fez um texto sobre ricos e pobres, mas esse foi reprovado pelos censores. Tentando manter a crítica, Mário Lago seguiu o conselho de alguns colaboradores e usou as metáforas do pato e do galo para representar o pobre e o rico, respectivamente, obtendo, finalmente, o aval dos censores que tinham, dias antes, vetado a mesma marchinha escrita por ele.

Cacá Diegues, como Mário Lago, engana a censura e faz um filme cujo personagem principal, uma escravizada que quer ser livre, demonstra total afinidade com a opressão imposta pela ditadura, na época em que o filme é feito. Miriam Rossini identifica como tema principal do filme “a luta do negro escravo contra a aculturação e a dominação do homem branco; em última análise, a luta pela liberdade” (Rossini, 2008, p. 3). A posição da autora é respaldada pela análise de Ismail Xavier, que interpreta o filme como a “encenação de um episódio de resistência à dominação branca” e Xica, a protagonista, como “símbolo da astúcia do oprimido” (Xavier, 1985, p. 30).

Cabe ressaltar, porém, que, em Xica da Silva, a aculturação é inevitável, provando a dominação do branco sobre o negro, e que o conceito de liberdade permanece ilusório, relativizado, sem poder ser concretizado em sua plenitude, mas a atitude de Xica como participante das relações de poder representa um diferencial.

Completa-se, então, uma tríade de reflexões sobre a instituição escravocrata, mas sob diferentes pontos de vista: a voz de dentro desse regime, a voz que vê a escravização como passado recente e a voz que a tem como passado remoto, mas não completamente extinto. Logo no início do filme de Carlos Diegues, um letreiro contextualiza a história:

 

Uma manhã da segunda metade do século XVIII, nas proximidades do Arraial do Tijuco (hoje, cidade de Diamantina), quando ouro e diamante eram tirados do fundo dos rios que corriam nas montanhas de Minas Gerais, para servir à Coroa Portuguesa. (Xica da Silva, 1976)

 

O pequeno texto anuncia uma época em que eram comuns as explorações do negro e da nova terra, estreitando os laços entre colonização e escravização. Em determinada sequência, o filho do senhor de Xica, personagem de Stepan Nercessian, critica o povo, que está ávido pela chegada do novo contratador de diamantes à cidade, dizendo que não há idiotice maior que louvar aquele cuja função é tirar a riqueza de sua terra. Essa espécie de complexo de inferioridade vitima não só o povo, mas também Xica, que se orienta pela moda e pelos costumes europeus, almejando-os e adaptando-se a eles.

Em certa medida, esse comportamento explica por que um indivíduo da classe popular, quando alcança um status mais elevado, reproduz a ideologia do dominante. Xica conquista o novo contratador e passa a ser tratada como senhora. Nessa nova situação, ela age como o personagem machadiano Prudêncio, os ex-escravizado que, ao virar senhor, compra seus próprios escravizados, revitalizando a hierarquização social que o submetera, no passado.

No entanto, Xica, diferente de Prudêncio, apenas pune seus escravizados, porque eles revoltam-se contra ela, considerando-a uma traidora da raça. Cite-se como exemplo a cena em que uma escravizada, ao servir Xica, sua nova senhora, humilha-a, joga sopa quente em seu vestido e recusa-se a limpá-lo. Diante disso, Xica resolve puni-la.

O tempo de escravização é como um estigma para ela, como demonstra a cena em que Xica, depois de alforriada, sai pelas ruas, vestida como branca e acompanhada por seu séquito de escravizados, e decide ir à igreja, para comemorar a liberdade conquistada, mas é barrada pelo padre, que lhe diz que, mesmo pertencendo, agora, a uma outra classe social, não deixou de ser negra e que só a entrada dos brancos é permitida ali.

Outro traço importante que se destaca em Xica é que ela não agride “sem motivo” os escravizados que a servem, assim como também não interfere, quando assiste a um branco castigando-os. Sua obsessão é praticar violência contra os brancos, com quem tinha contas a acertar, razão pela qual ela ordenava punições severas àqueles que faziam mal às suas mucamas ou às mulheres que se insinuavam para João Fernandes. Em um episódio particular, Xica, respondendo às piadas racistas feitas por um conde, seu convidado, motivado pela estranheza que lhe causou o fato de Xica ser negra e senhora, senta-se à mesa com o rosto todo pintado de branco, comprovando que a sua cor e a condição social conquistada por ela são incompatíveis, de acordo com a convenção social, sobretudo em um contexto dominado pela instituição escravocrata.

Passando à classe dominante, Xica, por um lado, consegue espaço para expressar sua cultura, direito que era negado aos escravizados, pelos seus senhores, mas, por outro, começa a fazer parte das articulações de João Fernandes, razão pela qual o antigo dono de Xica, ao ver a chegada de artigos de Lisboa e Paris, os quais João tinha encomendado a sua nova senhora, acusa-a de também estar participando do “saque geral ao país”. Desse modo, Cacá Diegues denuncia a exploração do território brasileiro pelos portugueses. Isso justifica a relação estabelecida entre colonização, escravização e exploração e a perpetuação dessa associação na sociedade contemporânea.

Adensando ainda mais essas conexões, na troca de favores mostrada no filme, a mulher troca sexo por roupas e outros luxos que a fizessem mais parecida com os brancos. Xica é um produto, uma mercadoria. Logo, o sexo norteia a estrutura senhor versus escravizado e, embora dê uma sensação de poder a Xica, não é suficiente para subverter totalmente as regras do sistema. A submissão de Xica é clara.

Xica e João enredam-se na corrupção, denunciada na exploração da colônia, nos desvios feitos pelo contratador, permitindo que ele se transformasse em um vassalo mais rico que a Coroa Portuguesa, e no tráfico de diamantes para a Holanda. Mas, um dia, a “festa” acaba. João Fernandes é obrigado a voltar ao seu país de origem e, com ele, desaparece também a Xica senhora. A condição de alforriada, sem o nome e o dinheiro de João Fernandes, nada significava. Tanto o final da protagonista, depois da partida de João, como o episódio em que o padre proíbe sua entrada na igreja, provam que não bastava o fato de ela ser rica; ela precisava também ser branca. Essa conclusão acentua a utopia da igualdade. A liberdade também é relativizada, já que, como a própria Xica menciona, a carta de alforria não lhe adianta de nada. Para finalizar, ficamos com as palavras de Miriam Rossini, que apresenta Xica como metáfora do Brasil, em um trecho oportuno para desconstruir a ideia de que a colonização e a escravização são coisas do passado:

 

Com certeza Xica é o Brasil que no início é colônia explorada (a Xica escrava), depois é elevado à condição de Reino Unido (Xica amante, que, embora escrava, é superior aos outros escravos), e, por fim, país independente (a Xica liberta). No entanto, da mesma forma que a liberdade de Xica da Silva não garante a ela ser tratada como igual aos brancos [...], o Brasil independente também não se torna um igual aos demais países europeus só porque deixou de ser colônia. O novo país continua sendo dependente e explorado, embora por novos senhores.

O sonho da liberdade e igualdade é, portanto, uma utopia. (Rossini, 2008, p. 5-6)

 

De 1976 para cá, o que mudou? Mais importante do que a resposta a essa pergunta é continuar lutando, para que, um dia, a utopia possa se transformar em algo comum e cotidiano. Afinal, quem imaginaria que hoje estaríamos discutindo sobre local de fala, protagonismo e empoderamento?

 


REFERÊNCIAS 

CUNHA, R. Incentivo fiscal e busca da identidade nacional na retomada. Disponível em: cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-672520040002000

28&script=sci_arttext - 14k –. Acesso em: 08 abr. 2006.

MORAES, M. (Org.). Perspectivas estéticas do cinema brasileiro  Seminário. Brasília: Universidade de Brasília/ Embrafilme, 1986.

ROSSINI, M. de S. Xica da Silva e a luta simbólica contra a ditadura. Disponível em: http://www.oolhodahistoria.ufba.br/04rossin.html. Acesso em: 15 jul. 2008.

STAM, R.; JOHNSON, R. Brazilian Cinema. New York: Columbia University Press, 1995.

XAVIER, I. et al. O desafio do cinema brasileiro. São Paulo: Jorge Zahar. 1985.

XICA da Silva. Direção de Carlos Diegues. Brasil: Jarbas Barbosa, Airton Correa, Hélio Ferraz, José Oliosi, Embrafilme, Distrifilmes e Terra Filmes; Embrafilme e Unifilms, 1976. 1 dvd (117 min); son.

 

 

Versão atualizada de textos que compõem a tese intitulada Brasil: nas melhores lojas do ramo, em livro e DVD, apresentada e defendida por Verônica Daniel Kobs, em setembro de 2009, na UFPR.

 

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* Verônica Daniel Kobs: Professora e Coordenadora do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora Visitante do Mestrado e do Doutorado da Florida University of Science and Theology. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Em 2018, concluiu o Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade, realizado na UFPR.

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